Após três anos de prática, começam a aparecer as inevitáveis tentativas de teorização política da geringonça.

Pedro Nuno Santos, secretário de Estado de Assuntos Parlamentares, num texto onde procura consolidar a aliança, reconhece que a geringonça ajudou à bipolarização do nosso sistema político, contribuindo para diferenciar o PS do PSD e providenciando uma “dialética entre visões diferentes da sociedade, que facilita a escolha do eleitorado”.

O PS teria, portanto, infletido à esquerda, vincando assim a sua diferença programática face ao PSD.

Mais adiante menciona, no entanto, que o PS “não está impedido de procurar compromissos alargados em áreas específicas (como as de soberania)” com a direita: apenas “deixou de estar obrigado a governar com ela”. Então percebemos mal. Afinal o PS não infletiu à esquerda. Apenas ficou desobrigado de governar com a direita. Quando é que o PS governou com a direita? Estará o autor a referir-se ao bloco central? Ou quererá antes dizer “governar à direita”, em vez de “com” a direita? Não se percebe. E quem o obrigava, tampouco.

Pouco importa, porque o fundamental, para Pedro Nuno Santos, é o combate ao “excesso de pressão” europeu para se realizarem as “reformas estruturais”: a “radical privatização de empresas e serviços públicos, a liberalização de mercados (a começar pelo laboral), e a desregulação generalizada de atividades económicas”.

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O PS assume-se agora como um partido do centro, o mediador incontornável que define, entre os dois extremos – esquerda e direita – aquilo que é bom para o país, tendo como pano de fundo a articulação da defesa contra as neoliberais reformas europeias.

Não deixa de ser espantoso que Pedro Nuno Santos não perceba a diferença de papel que está a atribuir ao seu partido. De primordial força definidora das políticas e do rumo do país – função que o PS desempenhou desde a implantação da democracia, evidenciando-se na luta contra o totalitarismo e na firme opção europeia, precisamente aquilo que configurava a tal obrigação de “governar à direita”– o PS assume-se, a partir da geringonça, como um mero mediador entre forças politicas opostas, tendo por objetivo lutar contra aquilo que o próprio Pedro Nuno Santos admite ser o atual “consenso europeu” em torno da necessidade de reformas estruturais.

Reconhece efetivamente que há um consenso europeu para as reformas, embora não as contextualize nem explique porque apareceu esse consenso e porquê agora. Trata-se de uma ofensiva neoliberal e isso basta.

Não interessa explicar a necessidade de a Europa permanecer competitiva face ao progresso económico da Ásia e dos Estados Unidos. Não interessa que a China se prepare para ultrapassar os EUA como potência económica, nem que isso explique grande parte do que está a suceder ao nosso vizinho do outro lado do Atlântico. Pela primeira vez desde que alcançaram a hegemonia mundial, os EUA sentem-se ameaçados precisamente no pilar que utilizaram para construir a sua grandeza: a economia. Por isso se concentram em tentar afastar-se do pelotão da frente e garantir a singularidade americana: “America first” significa “no more mister nice guy” para a Europa e para o resto do mundo. O Plano Marshall é agora para Detroit. A reforma fiscal norte-americana será o teste supremo às teorias económicas conservadoras, já experimentadas com Reagan, que assentam o crescimento económico na baixa de impostos e na diminuição do papel do Estado. E isso significa uma pressão enorme sobre as economias europeias.

Entretanto, a Europa perde pontos: O Brexit significou um duro golpe no bloco europeu, que se viu privado da sua segunda maior potência económica em termos de PIB. A Índia aproxima-se do PIB da França, que a Califórnia ultrapassou em 2015. Acabou-se o tempo das vacas gordas e agora há que lutar para assegurar o papel da Europa num mundo cada vez menos eurocêntrico. Está em causa o nível de vida dos europeus, o nosso espaço de prosperidade e de segurança económica, num futuro crescentemente incerto em que até as nossas pensões se encontram ameaçadas.

Porque efetivamente, ninguém na direita democrática quer acabar com um “Estado Social forte e universal”, e é pena que a esquerda se continue a arvorar como paladino contra essa ameaça inexistente. Sabe, no fundo, que está a lutar contra moinhos de vento, mas ainda está convencida que essa bandeira lhe dá votos. Pelo contrário, o que se quer é criar condições económicas para que se possa manter o Estado Social com viabilidade a prazo. Seria muito útil chegar a um consenso entre as forças democráticas sobre a melhor maneira de alcançar a sustentabilidade do Estado Social.

Entrar para a Europa é entrar para o pelotão mundial, e é preciso pedalar para nos mantermos nele. Pedalar na inovação, na competitividade e na flexibilidade. A opção europeia implica deixar para trás vias coletivistas anquilosadas no passado e que tardam em desaparecer definitivamente do nosso horizonte político-económico-cultural. É significativo que Portugal ainda se encontre no índice 42 de competitividade mundial, enquanto a nossa vizinha Espanha está 10 pontos à nossa frente.

Pedro Nuno Santos, infelizmente, continua a pensar em termos de luta de classes e direitos adquiridos. Considera as nacionalizações conquistas irreversíveis dos trabalhadores, esquecendo a ineficiência, falta de controlo, e desperdício dos tristemente célebres gestores públicos. Desconhece certamente a piada que circulava em Moscovo pouco antes da queda da URSS: “Sabes o que é uma sardinha? Uma baleia com 10 anos de comunismo”.

Será que não percebe como é que um aumento do salário mínimo pode contribuir para o aumento de desemprego; ou como uma descida dos impostos pode ter o resultado de aumentar, e não diminuir, a receita fiscal; ou porque é que o essencial numa economia do séc. XXI  é a informação, e porque a principal função dos governos é providenciar baixa entropia à economia.

Para Pedro Nuno Santos, o PS não necessita de sólidos valores ideológicos – que, para ele, só afastam o partido dos “consensos necessários”, entenda-se com a extrema esquerda – mas antes gerir as contingências do dia-a-dia como árbitro entre forças opostas.

Neste colete de forças opostas, como é que se consegue, simultaneamente, manter contentes a extrema esquerda e a Europa neoliberal? Com uma pequena encenação a cargo do Ministro das Finanças: no orçamento de Estado, acabam-se com os cortes e inscrevem-se aumentos de verbas em cada ministério, satisfazendo-se assim a esquerda e o eleitorado; na execução orçamental usam-se as cativações para impedir a efetivação dessas despesas, exceto, está claro, no respeitante aos pagamentos de pensões e salários. Conseguem-se assim deficits orçamentais que maravilham a Europa neoliberal. E o Governo pode dizer que reverteu os cortes, porque realmente inscreveu aumentos no orçamento, mas como não os deixou efetivar porque cativou as despesas, conseguiu resultados orçamentais invejáveis. Entretanto os 663.725 funcionários públicos que recuperaram dos cortes providenciam igual numero de apoiantes ao governo. Brilhante peça de malabarismo político-económico.

O único problema deste equilibrismo é que é insustentável, simplesmente porque assenta numa mentira. Como diz o ditado, pode-se enganar toda a gente durante algum tempo, ou algumas pessoas o tempo todo, mas não se conseguem enganar todas as pessoas o tempo todo.

Já há mostras de que a extrema-esquerda começa a abrir os olhos: Mariana Mortágua respondeu a Pedro Nuno Santos que, para transformar o affair em casamento, é necessária “uma diferente relação de forças entre o PS e a esquerda”. Ou seja, que o PS seja minoritário e a extrema esquerda maioritária. Efetivamente, é essa a correlação de forças que se coaduna com um partido arbitral, que é sempre o minoritário. Essa afirmação contém também em si todo um programa eleitoral: o atual entendimento é um mero trampolim para se alcançar uma posição maioritária. E não esqueçamos a grande diferença entre os círculos da extrema esquerda que o PS frequenta atualmente e a tal “direita” com o qual estava condenado a governar: esta última considera que um PS forte é essencial para a democracia, enquanto a primeira teria todo o gosto do mundo em esfanicá-lo alegremente.

Primeiro vieram as diabruras de Sócrates, que nos custaram um programa de resgate e o maior banco privado. Não admira que o conceito de liberdade seja cada vez mais visto como liberdade negativa: livre de constrangimentos do Estado. Agora vem a aliança com a extrema esquerda, inédita na Europa. Recordemos que a Alemanha avança pela segunda vez por um bloco central: assim melhor perceberemos o “orgulhosamente sós” onde ironicamente o PS nos está a acantonar.

Com esta ansia de governar a todo o custo, o PS joga o seu ultimo cartucho em termos de credibilidade nacional e europeia.