O Partido Comunista levou à Assembleia Municipal uma recomendação para a Câmara tomar medidas contra o “discurso de ódio” em Lisboa. Descrevia um quadro horrível dos portugueses, cuja ocupação assentava agora na “ofensa”, na “injúria”, na “discriminação”, e na “promoção da intolerância” e da “violência”, passatempo “cada vez mais comum na nossa sociedade”. Se o Partido Comunista odiasse os portugueses não faria deles um retrato mais hostil. Mas prosseguia. Aparentemente, a “eclosão” deste surto de brutalidade nascia de “ideologias antidemocráticas e retrógradas” – considerava o PCP, cuja vanguarda política e filosófica faz capas da Vogue e desfila na Moda Lisboa. E apesar de localizado nos limites do concelho, este inferno era só uma fracção de um problema com “escala global”, representando uma clara “ameaça à paz” – receava o PCP, que apoia a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin.

O horror da caracterização servia ao PCP para justificar a parte deliberativa do documento, afinal uma série de limitações à liberdade de expressão, a exercer nas escolas, na própria Câmara, nas juntas de freguesia, e, por atacado, em “organismos públicos e privados”. Vale a pena pararmos aqui, não só pela importância inerente ao assunto mas também porque a votação foi uma correspondência directa do que é hoje esquerda e direita. Ninguém se absteve. A recomendação foi aprovada com o voto favorável da esquerda, sem excepções, hesitações, ou meias-tintas. Toda a direita votou contra, como tinha de votar. Estávamos perante um despudorado exercício de hipocrisia, em que os comunistas se vestiam de vítimas quando historicamente se reputam entre os maiores perseguidores. A esquerda usa estes expedientes para passar por protectora, mas é agressora impenitente: persegue, ofende, e atinge com injúrias e difamação toda a gente que se atreve a criticá-la; fomos “nazis”, sistematicamente “fascistas”, “racistas” – desde o cartaz na manifestação dos professores – e, como se esperava a todo o momento, agora entregamo-nos ao “discurso de ódio”.

O “discurso de ódio” é um crime tipificado na lei portuguesa, pormenor de relevância. Mostra a tradição esquerdista de criminalizar os adversários, não lhe bastando impor as suas políticas e argumentos. Mas há mais aspectos. Dizia Fontes Pereira de Melo que “não há ideias proibidas, há comportamentos ilegais”, e estava certo. A diferença entre uma coisa e a outra é o que está tipificado na lei, cuja interpretação e decisão cabem exclusivamente ao tribunais. Só num mundo comunista é que a justiça criminal pode ser entregue a organismos burocráticos. Nas democracias liberais, existem competências próprias assentes num indispensável regime de separação de poderes – de que muito se fala, mas cuja natureza a nossa pomposa e analfabeta opinião escrita se recusa a compreender. Falo daquele lumpen que publica nos jornais do regime.

Estas propostas e práticas da esquerda promovem a constituição de milícias, exércitos de “bons cidadãos”, putativos activistas “bem intencionados”, que se entregam à denúncia; e uma burocracia oleada que cuida de punir “criminosos” sem processo na justiça. Não há pequeno prazer que mais agrade a um ressentido do que castigar o seu semelhante. E numa sociedade empobrecida, como são, mais tarde ou mais cedo, todas as sociedades governadas pela esquerda, o ressentimento ganha proporções arrepiantes.

Nenhuma escola; nenhum governo, central ou local; nenhuma assembleia, ainda que eleita e soberana na aplicação do regimento; e nenhum serviço administrativo do Estado pode decidir se foi ou não cometido um crime de “discurso de ódio”. Só um tribunal tem esse poder e essa competência. Mais ninguém. Parece que a direita portuguesa, a pouco e pouco, vai compreendendo esta verdade simples. Não podemos aceitar mais limites à liberdade de expressão para além daqueles tipificados na lei.

Resta confirmar, por curiosidade ociosa, de que lado votou a Iniciativa Liberal. Como terá sido? Escrevi, no princípio do texto, sobre a correspondência directa entre esta votação e o que é hoje esquerda e direita. Exactamente, a IL juntou-se à esquerda. Em matéria de liberdade de expressão, a Iniciativa Liberal e o Partido Comunista partilham a mesma desconfiança. “Concordamos com tudo” e “queremos mesmo muito votar todos os pontos favoravelmente”, declarou o fundador do partido e líder da bancada, triunfalmente imune a tudo o que expliquei aqui. No final da discussão, apaixonado contra a “tentativa de colar a IL à esquerda”, o individuo empunhou o microfone e repetiu “não passará!, não passará!, não passará!” – o lema de Dolores Ibárruri. Sim, essa mesma, presidente do Partido Comunista de Espanha.

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