O encontro do ditador norte-coreano, Kim Jong-un, com o novo czar russo, Vladimir Putin, é o mais recente ato de uma espécie daquilo que poderá ser designado como uma internacional populista-ditatorial. Algo a fazer lembrar o apelo marxista de antanho – proletários de todo o Mundo uni-vos – mas obedecendo a uma lógica que pouco guarda do mito fundador, uma vez que substituiu a ideologia pelo pragmatismo, sem esquecer o apoio que a extinta URSS concedeu aos movimentos de libertação. Sendo certo que a Rússia de Putin pouco ou nada tem a ver com a antiga URSS, há reminiscências que custam a desaparecer. A nível interno, basta atentar nas sucessivas posições públicas do PCP. A nível externo, é suficiente observar a forma entusiástica como Nicolas Maduro saudou as eleições locais que Putin acaba de levar a cabo na Rússia, incluindo nas zonas unilateralmente ocupadas.

Mais uma prova de que o pretenso isolamento internacional de Putin não corresponde à realidade, mas apenas a um wishful thinking que colhe, sobretudo, na visão ocidental. Aquela que foi responsável pela elaboração das Grandes Cartas de Princípios e que continua a lutar para que seja o eixo normativo a conduzir as relações internacionais. Daí a condenação unânime da invasão russa da Ucrânia por parte dos países que integram a Ordem Liberal.

Porém, as votações na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas deixaram claro, desde o início, que a Rússia de Putin dispunha de aliados que, ou se abstinham, ou, inclusivamente, iam mais longe ao votarem contra qualquer decisão condenatória da atitude russa. A Coreia do Norte insere-se no segundo grupo.

Voltando ao encontro, o secretismo oficial não se revela suficiente para encobrir as motivações que subjazem ao mesmo. Assim, Putin pretende não apenas a continuação do apoio diplomático por parte do regime de Pyongyang, mas, em primeira instância e a muito curto espaço temporal, o fornecimento de munições, designadamente munições ou projéteis de artilharia, compatíveis com as armas de que a Rússia dispõe e está a utilizar no teatro de guerra, e mísseis antitanque. Quanto ao líder da Coreia do Norte, consciente do atraso do seu país no que concerne à inovação tecnológica – um claro reflexo do autocentramento a que sujeita toda a vida nacional –, pretende que a Rússia ajude a modernizar a indústria de guerra norte-coreana, através do fornecimento de tecnologia para satélites e submarinos nucleares.

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Afinal de contas, é Kim Jong-un a replicar o modelo decorrente do consenso de Pequim, outro dos aliados de Putin, ou seja, a aposta na cooperação sem perguntas e na ajuda ligada. A cooperação assente na fórmula win-win, mesmo que os ganhos sejam muito diferentes para cada uma das partes. Basta atentar nos reflexos que essa modalidade de cooperação teve em África,

Face ao exposto, poucas dúvidas restarão de que o Mundo bipolar pertence ao passado e que a hegemonia norte-americana, mais exatamente estadunidense, está a ser posta em causa pelas novas potências hegemónicas. No caso em apreço, pela Rússia, porque a Coreia do Norte não passa de um pião que rodará de acordo com a corda que o Kremlin e Pequim decidirem conceder-lhe.

Entretanto, os Estados Unidos, enquanto país líder da Ordem Liberal, continua aflito a tentar desenlear as mãos do conflito em que se viu envolvido na Ucrânia. Uma tarefa urgente porque a Terra do Tio Sam sabe que o Pacífico é o seu destino manifesto. De facto, se as duas guerras mundiais tiveram motivações europeias, a verdadeira batalha de Washington será travada a Oriente. É aí que residem as suas principais preocupações. Um oceano de inquietações de que a questão de Taiwan constitui apenas a ponta do iceberg.

É por isso que a Casa Branca olha com inquietação para o encontro de Putin e Kim Jong-un. Não por aquilo que pode representar para os próximos desenvolvimentos do sangrento conflito que continua a consumir milhares de vidas na Ucrânia, mas pelo que pode significar para o Mundo de Múltiplas Ordens. Um Mundo em que os Estados Unidos terão de aprender a conviver com os princípios e os valores das outras ordens.

Afinal, no palco internacional, como em qualquer peça de teatro, os atores não têm todos a mesma importância. Uma situação que tem tendência a piorar quando o palco passa a arena. Entretanto, nos bastidores, Xi Jinping aguarda o momento de ser chamado à cena. Com o seu proverbial sorriso. Em nome de um Mundo pós-hegemónico.

Oxalá que, na Terra do Tio Sam, a gerontocracia que luta pela liderança tenha um fugaz lampejo de clarividência. Antes que seja tarde. Demasiado tarde.

Como se vê, mais do que um encontro entre Putin e Kim Jong-un, estamos perante um desencontro com a antiga ordem mundial.