Há uns dias – e a propósito início do ano lectivo em Espanha – li uma notícia no El Mundo que começava com a seguinte mensagem de uma professora universitária, num chat do WhatsApp: “Los alumnos tienen problemas para leer y entender lo que leen, poca autodisciplina y poca capacidad de esfuerzo, problemas de yoísmo y escaso manejo de frustraciones. Creen que saben de todo y no aceptan ser corregidos”.
Em poucas palavras, a tal professora fazia um retrato dantesco de uma geração, ou parte dela, que parece lidar mal com “frustrações”. Uma palavra desagradável, como aliás o sentimento a ela associado.
Não vejo no entanto uma “culpa” própria – pelo menos integral ou geracional – nesta dificuldade em gerir “frustrações”. Se por um lado esta forma de estar contemporânea resulta de uma certa demonização do mérito (para garantir a “igualdade”, dizem – toda uma outra crónica), por outro, é o resultado directo de décadas de expectativas não concretizadas, de planos e pacotes mais próximos de panfletos do que de políticas públicas sérias e ponderadas, em suma, de ilusões de todos os âmbitos e prazos. Almejou-se o céu, mas teimamos em não sair do chão.
Torna-se por isso urgente reflectir sobre a “responsabilidade”, o papel de morto que lhe dedicaram, e de como a cultura dos bodes expiatórios e da inimputabilidade tem dominado espaço público e político.
Alguns exemplos. Em Portugal, o Presidente da República afirmou, que o aumento das taxas de juros “é preocupante”, e que “favorece forças políticas mais radicais e populistas” – e eu que pensava que o Chega tinha nascido em 2019, ou o que Vox passou a barreira dos 50 deputados nas Cortes (também em 2019), ano que a taxa de juro era “0” – ignorando por completo o Tratado de Maastricht, e a missão do Banco Central Europeu de controlar a inflação. Não interessa pensar nas causas da inflação, como o prolongado quantitative easing do mesmo Banco Central Europeu, os efeitos da COVID-19, a invasão russa da Ucrânia, a transição verde ou as cascatas de dinheiro que inundaram as economias europeias nos últimos anos. Como dizem os americanos, who cares?. O que interessou foi encontrar um bode expiatório, um vilão (ou vilã), alguém que expie qualquer culpa total ou parcial de decisões políticas próprias e passadas. Algumas delas obviamente acertadas, mas que acarretaram extenalidades negativas – que só podem surpreender os mais distraídos (ou os ignorantes) – que devem ser assumidas, sob pena de estarmos a infantilizar (mais ainda) eleitores e cidadãos adultos.
(Ainda em Portugal) o Primeiro-Ministro e alguns personagens de quinta linha e de duvidosa capacidade política – alguns com lugar cativo no Conselho de Ministros, outros nas tertúlias televisas – vão repetindo, que é preciso “tempo” para resolver os problemas do ensino, da falta de resposta do SNS, da falta de casas, dos atrasos na justiça, enfim, do condomínio, e do carro que ainda não foi lavado e aspirado depois das férias. Mais uma vez, o que importou foi encontrar um bode expiatório – mesmo que os autores deste desesperante pedido de “tempo” estejam no Governo há praticamente uma década.
Ora, se durante alguns anos “a culpa foi do Passos Coelho”, hoje, a culpa é da “falta de tempo” (ou dos Governos de Cavaco Silva, sempre que o Professor publica um livro). Até ao final do mandato – como dizem os americanos, God knowns when – ainda veremos o dr. Costa e a entourage de notáveis que o segue a culpar, sei lá, o Viriato.
No entanto, Portugal não é um exclusivo em matéria de bodes expiatórios. Em Espanha, a “Ley del sí es sí” – uma espécie de lei cartaz da esquerda radical do Podemos, aprovada com os votos do PSOE em Agosto de 2022 – já permitiu a libertação de 117 condenados por violações, e a redução das penas a mais de mil. Se o resultado já era dramático, nos últimos dias tornou-se simbolicamente aterrador, com a redução da pena a um dos condenados da manada. O crime que serviu de pretexto para esta alteração do Código Penal.
Apesar dos sucessivos avisos por parte da oposição, de juízes, advogados e Catedráticos de Direito, para as consequências nefastas da “Ley del sí es sí”, esta foi aprovada – qual acto heróico de resistência ao conservadorismo crónico “de la derecha mediática” – e, repito, 117 condenados por violações foram libertados. Mais uma vez, ninguém se demitiu ou foi demitido, ninguém assumiu qualquer responsabilidade política, uma vez que o importante foi encontrar um bode expiatório, que neste caso foi o Ministério da Justiça (responsabilidade do PSOE) e claro, o machismo estrutural do sistema judicial espanhol, e não o princípio descrito, e bem, no artigo 2.º do Código Penal espanhol (não retroactividade da Lei Penal, excepto nos casos em que esta favorece o réu).
Alguns exemplos – há certamente outros – que revelam a cultura de inimputabilidade, de egos inchados, de fraca memória, de ausência de responsabilidade – ou como dizem os americanos, de lack of accountability. Em suma, uma pandemia cultural, que ninguém está muito interessado em combater. É pena.