De cada vez que saem publicados os resultados do acesso ao ensino superior, a atenção prende-se com os cursos mais competitivos e com notas de entrada mais altas — engenharias, Medicina, Economia, Direito. Um exercício igualmente relevante é olhar lá para baixo, para os cursos que, tendencialmente, apresentam médias de acesso mais baixas, em muitos casos deixando um número significativo de vagas por preencher. Sobretudo quando esses cursos formam os nossos jovens em áreas que são determinantes para o desenvolvimento do país. É o caso dos cursos de formação de professores, que apresentam geralmente índices de fraca competitividade, demonstrando que os melhores das actuais gerações ambicionam cursos e carreiras que não passam pelo ensino. O que, dito de outro modo, significa que a formação escolar dos mais novos não conta com a mais-valia dos contributos daqueles que são os academicamente mais bem preparados.

Olhemos para um exemplo concreto: o da licenciatura em Educação Básica. Das 848 vagas disponíveis em instituições públicas de ensino superior, somente foram preenchidas 599 (71%), sobrando 249 vagas. Estas vagas distribuíram-se por 20 instituições diferentes. Só numa instituição (a Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto) a nota do último colocado superou 14 valores. Apenas noutras 4 instituições (20%) a nota do último colocado superou 13 valores. E em 11 instituições (55%) a nota do último colocado ficou abaixo de 12 valores (numa delas, ficou mesmo abaixo de 10 valores). Surpreendente? Não o pode ser, porque sabemos há vários anos que os cursos destinados à formação de professores estão em queda — na procura pelos alunos e nas notas de acesso. Por exemplo, em 2017, a jornalista Isabel Leiria do Expresso havia analisado as notas médias dos cursos por áreas temáticas e constatado que a Educação se classificava em penúltimo (apenas acima de Serviços Sociais). Contudo, num ano em que se bateu o recorde de colocados no ensino superior público na 1ª fase (51 mil) e que, por via das alterações aplicadas aos exames nacionais e às regras de acesso ao ensino superior, vários cursos viram as suas médias subir a patamares absurdamente elevados, é digno de realce que cursos como o de Educação Básica, apesar da transversal subida de notas, permaneçam na cauda — com menos procura do que a oferta existente e com notas de acesso comparativamente pouco competitivas ou mesmo baixas.

Isto não nos diz tudo sobre o perfil dos futuros professores — se serão bons ou maus a dar aulas (sim, já sei, em 2014 escrevi sobre este assunto com um título provocador mas injusto, despertando incompreensão e fúria). Ora, não dizendo tudo, deixa no mínimo dois alertas de enorme importância. Primeiro, ao mostrar que os bons alunos não querem ser professores, expõe uma tremenda perda de potencial na educação, que não pode contar com os jovens mais talentosos das suas gerações para formar os mais novos e desenvolver soluções inovadoras para os desafios do sistema educativo. Segundo, ao evidenciar a pouca competitividade dos cursos para professores, impõe-se a constatação de que, em vez de atrair talento, o actual modelo de carreira docente (e, já agora, a sua remuneração) afasta quem tem maiores ambições profissionais e/ou financeiras.

Mudar este retrato é uma urgência. Contrariar estes incentivos negativos e reerguer o prestígio social da profissão docente deveriam ser prioridades políticas do país e, em particular, do Ministério da Educação. Por uma questão estratégica, de desenvolvimento económico e social. Mas, também, por questões de ordem prática: começam a faltar professores e, em breve, faltarão ainda mais. Todos os anos, durante o decorrer do ano lectivo, a substituição de professores vai-se tornando num desafio — porque os disponíveis vão sendo cada vez menos e porque em determinados grupos de recrutamento (disciplinas) a escassez de professores é mais acentuada do que noutras. Neste ano lectivo, com a pandemia, as dificuldades vieram mais cedo e já há relatos de directores que não conseguem completar a sua equipa docente. Repare-se: isto só vai piorar. Daqui a uns anos, visto que 54% dos professores têm mais de 50 anos de idade e veem a reforma no horizonte, a saída em massa destes profissionais deixará um grande vazio no sistema educativo — tanto de recursos humanos, como de conhecimento e experiência. Um vazio que, em grande medida, será preenchido pelos que, acima referidos, agora frequentam (ou frequentaram recentemente) os cursos de formação inicial de professor.

Agora, a pergunta fatal: o que está a fazer ou a dizer o Governo acerca deste desafio estratégico do sistema educativo, que tanto afecta o seu presente como o seu futuro? Nada. E não é como se a questão tivesse acabado de se colocar. Quem olha para os dados que caracterizam o sistema educativo, há muito tempo que detectou o problema — por exemplo, reagindo a esse silêncio, há quase três anos publiquei este ensaio de análise. Além disso, não é como se faltassem soluções e alternativas. Seja por inspiração das boas práticas internacionais — o modelo finlandês de acesso aos cursos de Educação é uma referência, tendo conseguido que os melhores alunos que vão para o ensino superior ambicionem precisamente tornar-se professores. Seja nas propostas surgidas em Portugal sobre a revisão da carreira docente e da descentralização da contratação dos professores — a esse propósito, é indispensável ler esta recomendação do Conselho Nacional de Educação. Infelizmente, nada disto se discute no plano político e não há qualquer sinal reformista no horizonte, sabendo-se que redesenhar a formação, o recrutamento e a carreira dos professores seria uma reforma de longo prazo e com efeitos lentos. Só que o tempo não pára e, passo a passo, o que está hoje longe, um dia ficará perto. E tal como um carro que acelera imparável contra um muro, tudo leva a crer que o Governo só acordará para este tema quando a colisão for inevitável.

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