Suspeito – e suspeito convictamente – que a comissão de inquérito parlamentar ao Banif não vai ser um espetáculo bonito de ver. Nada que se assemelhe à comissão de inquérito ao caso BES, mesmo à do caso BPN. Há muitas razões para isso, mas uma sobrepõe-se às demais: neste caso não há um “vilão” óbvio a que se possa apontar o dedo. Não há um Ricardo Salgado, como não há um José Oliveira Costa. Ou mesmo um João Rendeiro, o mais descarado e deslumbrado de todos. Horácio Roque, o criador do Banif, não cai nessa categoria de vilões, pelo contrário. Além disso já morreu, pelo que será poupado aos erros que cometeu.
Ficaremos assim confrontados apenas com as escolhas políticas (e, porventura em menor grau, as do Banco de Portugal). Com as escolhas do anterior governo e com as escolhas do atual governo. Ambas me suscitam muitas questões. Não compreendo porque é que a equipa de Passos Coelho (sobretudo na era pós-Gaspar) deixou apodrecer a situação já que, face à intransigência de Bruxelas e à teimosia da gestão de Jorge Tomé, sempre mais preocupado em defender os acionistas do que em apresentar um plano de reestruturação viável, esta ia acabar por explodir mais tarde ou mais cedo. Da mesma forma não compreendo, até me indigna, que a solução adotada por este governo beneficie o resto da banca, entregando-lhe as receitas dos bons ativos do Banif, e faça os contribuintes pagar uma fatura que, face à dimensão do banco, é, por ora, difícil de compreender.
O mais provável, infelizmente, é que a comissão de inquérito se entretenha com esta batalha política entre a anterior e atual maioria, e não trate de olhar para a floresta. E a floresta está aí à nossa vista, entra pelos nossos olhos dentro: é um monstro que pode ser avaliado em 40 mil milhões de euros, pouco menos de um quarto de toda a riqueza que o país produz num ano. Esse monstro é o buraco que a crise revelou no balanço dos bancos – uma parte dele coberto pelo Estado, outra pelos acionistas, outra por novos investidores, outra ainda por prejuízos que levarão anos a digerir. Sendo que digerir implica ir limpando o crédito malparado, o que limita a capacidade de financiamento dos bancos – e, por isso, corta as pernas ao investimento em boas ideias e projetos.
Na verdade a crise só pôs a nu o desequilíbrio que já lá estava – um desequilíbrio que não é apenas da banca portuguesa nem só obra de malfeitores (que os houve, e muito), também foi fruto de um modelo errado de desenvolvimento, de um intolerável conúbio entre banqueiros e governos (que, diga-se em abono da verdade, só foi quebrado nos últimos quatro anos) e da existência de expectativas irrealistas.
Em Portugal os bancos não se afundaram porque andaram a especular com derivados e outros produtos especulativos, como sucedeu noutros países. Também não rebentou em Portugal nenhuma bolha imobiliária, como em Espanha. O que sucedeu em Portugal foi algo diferente: a construção de castelos em cima de areia e a ideia de que o futuro resolveria os problemas do presente.
Primeira questão: como é que construímos castelos em cima de areia? Porque o capitalismo português não tem capital, tem dívida. O capital que existia foi em boa parte destruído com as nacionalizações e, quando chegaram as privatizações, estas foram suportados por dívida. Sendo que esse processo começou exatamente na banca, o primeiro setor a ser privatizado, o que por isso mesmo começou por atrair os melhores quadros, o que se dizia ser dos mais modernos da Europa.
Segunda questão: como é que se pensou que o futuro resolveria sempre os problemas do presente? Porque se começou a emprestar no pressuposto de que as garantias dos empréstimos se iriam valorizar, como sempre sucedera no passado, e isso deixou de acontecer. Pelo contrário, começaram a desvalorizar, processo que a crise acelerou dramaticamente. Grande parte dos créditos foram dados no setor imobiliário, no pressuposto de que as casas e os terrenos se valorizariam, como sempre sucedera no passado, e ocorreu o contrário.
Uma parte dos enormes buracos que surgiram na banca vêm destas avaliações erradas, da excessiva dependência do negócio do imobiliário (porque se não tivemos uma bolha especulativa a rebentar, tivemos mesmo assim uma espécie de “furo lento” a esvaziar…), de uma má avaliação dos riscos e dos planos de negócios, e por aí adiante. Foi aí que se criaram as chamadas “imparidades” que têm vindo a ser cobertas ano atrás de ano. Isto para além da fraude e do compadrio, que assumiram as mais diversas formas mas que, mesmo somando tudo, não dá para chegar a valores tão elevados. (Uma excelente explicação detalhada de todo este processo pode ser lida no Expresso de 24 de Dezembro.)
O que distingue o caso Banif dos anteriores é que, desta vez, não podemos achar que foi tudo falcatrua. Não foi. Foi gestão deficiente ou mesmo má gestão, foi demasiada proximidade com os poderes políticos das regiões autónomas, mas foi tudo isso potenciado por um modelo de desenvolvimento insustentável.
E aqui chegamos a um ponto central, que por regra ninguém refere: mesmo depois de nos terem prometido que tinha acabado o tempo “do cimento” e chegado o da “paixão pela educação”, a verdade é que desde essa data – 1995 – que tanto a dívida pública como a dívida privada começaram a disparar. E que continuámos a ter uma parte demasiado grande da economia dependente da construção civil – foram os bairros periféricos que se multiplicaram como cogumelos, os centros comerciais que nasceram por todo o lado, as autoestradas e as rotundas e tudo o mais.
Foi esta economia que os bancos andaram a financiar nos anos dos grandes lucros, quando contabilizavam nos seus ativos os mega-projetos que depois se revelariam enormes elefantes brancos. Foi esta economia que se mostrou incapaz, na década que antecedeu a crise, de produzir um crescimento que se visse. Foi este modelo que explodiu com a vinda da troika, a falta de crédito e a perda de quase metade do volume de atividade, e do emprego, na construção civil.
Um país assim não era viável – não apenas os seus bancos. Mais: este turbilhão, por ser estrutural, por derivar de uma economia a viver a crédito, bem acima das suas possibilidades, não afetou apenas a banca privada “ávida de lucros” e dirigida por “banqueiros gananciosos”: também tocou, numa proporção muito semelhante, a banca pública.
Senão vejamos (e recorro aos números do trabalho do Expresso já referido). As imparidades (o tal crédito mais concedido que teve de ser assumido como prejuízo) do BCP entre 2008 e 2014 ascenderam a 9,3 mil milhões de euros e as do BES/Novo Banco, a 5,8 mil milhões, o que são valores astronómicos. Só que, no mesmo período, as da Caixa Geral de Depósitos, o banco do Estado, de “todos nós”, foram de 7,9 mil milhões. E as do Montepio, uma caixa mutualista, foram de 5,7 mil milhões. O mal, como se vê, está bem dividido pelas diferentes aldeias, sejam elas públicas ou privadas.
Justifica-se agora a perplexidade: mas como foi possível se este era o setor da economia que conseguia atrair os melhores quadros, supostamente os mais capazes, e também lhes pagava generosamente (nalguns caos principescamente)?
Há várias explicações que pouco têm a ver com ganância e sede de lucro, antes com políticas publicas erradas. A concentração do risco bancário no setor imobiliário só foi possível porque a inexistência de mercado de arrendamento em Portugal – a reforma mais vezes adiada e uma das mais incompletas dos últimos 30 anos – empurrou os portugueses para serem proprietários. Era a opção racional de quem queria casa, e assim sucedeu, oferecendo aos bancos um mercado aparentemente fácil, com um risco que parecia controlado e que não exigia muito esforço dos seus funcionários: era só esperar que os clientes lhe batessem à porta.
Ao mesmo tempo, a descida dos juros associada à entrada para a moeda única favoreceu políticas públicas de estímulo ao consumo (e ao endividamento) políticas essas que os bancos potenciavam. Mais: essas mesmas políticas públicas, casadas com a proteção dos “campeões nacionais”, fez deslocar os investimentos para os setores da economia que trabalhavam para o mercado interno, prejudicando de passagem os setores exportadores.
O tempo de glória e luxo ostentatório de uma PT ou de uma EDP, duas empresas viradas para o mercado interno, foram também os tempos de definhamento de algumas fileiras exportadoras. É mais fácil, sobretudo quando se tem as costas quentes pelos governos, vender em mercados protegidos e relativamente fechados do que fazê-lo em mercados concorrenciais.
Assim se foram acumulando as imparidades no BES ou na Caixa, assim se foi criando uma situação em que o nosso setor financeiro ficou tão frágil que se colocou literalmente nas mãos de investidores estrangeiros. Com um problema: é que nem todos trouxeram know-how e profissionalismo como um Santander, pelo contrário. Foi de resto assim que o capital angolano tomou a posição que tem no nosso setor financeiro e o utilizou para operações que não seriam toleradas em nenhum outro país. Sendo que, face à degradação da situação económica de Angola, podemos estar com outra bomba relógio nas mãos: alguém sabe, por exemplo, qual é a exposição da banca portuguesa aos generais e às princesas do regime de Luanda? Alguém sabe que fatura virá com o eventual incumprimento de uma dessas figuras, cenário que a queda dos preços do petróleo tornou numa ameaça credível?
Eu detesto proclamações de “somos todos culpados por todos vimos e nada fizemos”, mesmo que isso seja parcialmente verdade. Por isso não vou por aí, pois há quem sempre tenha remado contra a maré e nunca, por exemplo, tivesse aceite entrar na corte de um Ricardo Salgado (e quando falo de corte não falo apenas de políticos, falo também de muitos jornalistas). O que me interessa é outra coisa: é que possamos aproveitar o caso Banif para ver a floresta, pois desta vez não há um bode expiatório evidente.
Volto assim ao princípio: a comissão de inquérito pode servir apenas para guerrilha política e para o soundbyte, ou pode servir para ajudar a perceber como é que um banco onde não se conhecem métodos fraudulentos ou problemas regulatórios acaba como acaba. A má gestão pode (e vai) explicar muita coisa. Mas se nos ficarmos por aí não veremos as tempestades que já se formam no horizonte. Nomeadamente no banco acima de toda a suspeita, o banco do Estado.
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