A sociedade portuguesa é um corpo doente, cada vez mais doente de maleitas várias, que começa a produzir entusiasmadamente delírios em grande escala, sendo um dos mais notórios a actual conversa sobre o racismo. Passo rapidamente sobre a manifestação de uma dúzia de mascarados em frente à sede da SOS Racismo e a carta em que se ameaçavam dez pessoas com inusitada cortesia apelidadas de “anti-racistas” e “anti-fascistas”, e não referidas com os habituais predicados que a selvajaria usa habitualmente para se dar a conhecer ao mundo. Trata-se de um puro caso de polícia, um caso grave porque envolve ameaças de morte, que convém esclarecer o mais depressa possível e que obriga a uma acção pronta por parte das autoridades, e não me parece, de resto, que a investigação apresente dificuldades transcendentes. Do ponto de vista político, ou mesmo sociológico, não vejo como, de momento, lhe atribuir grande significado. Infelizmente, a selvajaria sempre se encontrou bem distribuída entre os habitantes do nosso velho planeta e não é agora que a coisa vai mudar.

O que verdadeiramente interessa, do ponto de vista político e sociológico, são outras coisas. Em primeiro lugar, o carácter mimético – e, portanto, num certo sentido artificial – do omnipresente discurso sobre o racismo em Portugal. Em larga medida, ele entronca nos protestos americanos provocados pela morte de George Floyd. É como se não pudéssemos de modo algum ficar para trás, já que tal assinalaria de forma inequívoca o nosso atraso relativamente ao que de mais mediático o mundo contemporâneo nos dá. Em segundo lugar, o presente surto de discurso “anti-racista” (e, concomitantemente, “anti-fascista”) tem uma origem directa muito óbvia: o progresso significativo, nas sondagens, de um partido populista de direita como o Chega de André Ventura. É sem dúvida preciso não ver nada do mundo à nossa volta para não perceber que é o Chega, com a sua ameaça de superar em votos o Bloco de Esquerda (para não falar do PCP), que é, para a maior parte dos opinadores, o verdadeiro e único objecto do discurso “anti-racista”, e é-o pela simples razão do seu iminente crescimento eleitoral. Tudo o resto, a começar pela suposta “Nova Ordem de Avis”, ou lá como se chama a coisa desconhecida, é um disfarce mais ou menos inventivo.

É claro que, nesta matéria, o jornalismo não pode dizer o óbvio. E o óbvio é que foi António Costa, ao inventar a “geringonça”, dando assim um poder e um relevo inéditos à extrema-esquerda (PCP e Bloco), que criou na sociedade todas as condições possíveis e imaginárias para que surgisse um movimento simétrico de direita radical, segundo a tipologia que o muito atacado Riccardo Marchi sugere. Dito de outra maneira: não fosse a projecção social do Bloco, com todos os favores de que goza na comunicação social, André Ventura nunca teria ultrapassado os limites de uma influência mínima. O Chega alimenta-se por inteiro do que Costa e o jornalismo fazem do Bloco e de outras organizações afins. É o antídoto imaginário para um discurso radical que quase se apresenta sem contraditório na sociedade, e que uma oposição inerme, errática e informe nada faz para colocar no seu devido lugar.

Quer isto dizer que a querela do racismo é um puro efeito de superfície, sem conteúdo substantivo? De modo algum. A questão do racismo é um problema real em todas as sociedades e Portugal não está imune a ela, como por milagre. À nossa escala – que é, de resto, relativamente reduzida -, o racismo declina-se de várias maneiras, e é sem dúvida necessário estar atento a elas e combatê-las através de reformas e políticas que se revelem necessárias e exequíveis. O problema é que, pelo caminho que vamos, com a terrível ideologização de tudo e o folclore que costumeiramente a acompanha, o caminho que se percorre é exactamente o inverso: o de uma condução à sua acentuação. Como se, para estarmos certos da sua eliminação final, tudo fosse feito para o fomentar.

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Há uma história narrada no D. Quixote de Cervantes (págs. 310-347 da verdadeiramente excelente tradução de Miguel Serras Pereira, D. Quixote, 2015) que, a propósito de outras desventuras, ilustra às mil maravilhas o que pretendo dizer, se aceitarmos uma analogia parcial. É a história do “curioso impertinente”, cuja leitura não poderia recomendar mais entusiasticamente. Relendo-a trinta anos depois da primeira vez, o maravilhamento foi maior ainda. Nunca como no século XVI e inícios do século XVII a prosa tanto prolongou a poesia e recebeu desta a sua particular e enigmática inteligência da verdade.

A história passa-se em Florença. Anselmo e Lotário são os melhores e mais inseparáveis amigos do mundo. Entretanto, Anselmo conhece Camila, de uma extraordinária beleza, e casa-se com ela. Tudo corre pelo melhor, até que Anselmo faz um curioso pedido a Lotário. Quer ter a certeza – quer ter uma prova indisputável – da absoluta fidelidade de Camila, da sua capacidade de resistir a todas as tentações, e pede ao amigo que a tente seduzir. Só com essa prova obtida a sua felicidade poderá ser perfeita. Lotário explica-lhe longa e eloquentemente que jamais poderá fazer aquilo que o seu melhor amigo deseja, mas Anselmo não desiste enquanto o outro não se compromete a fazer o que lhe pede. Todas as ocasiões são propiciadas por Anselmo para a sedução, mas Lotário, esperando que a loucura passe, nada faz para conquistar Camila, narrando no entanto a Anselmo declarações de amor imaginárias a que Camila responderia com desdém e protestos de amor fiel e verdadeiro por Anselmo. Bom, Anselmo descobre que Lotário nada fez de facto do prometido e, na ânsia da certeza absoluta, da prova sem contradição possível, volta a insistir. Até que, fatalmente, Lotário se apaixona por Camila, e esta por ele. A partir daí, Lotário continua, nas conversas com Anselmo, a descrever a esplêndida virtude de Camila, com quem vive um grande amor, e Anselmo finalmente acredita nele e julga-se na posse da felicidade maior que almejava: Camila é-lhe inteiramente fiel. “Ao que busca o impossível, é justo que seja negado o possível”, escreve Cervantes, e os amigos, quando se vêem, juntam-se “para celebrarem os dois a mentira e a verdade mais dissimulada que jamais pudera imaginar-se”.  No fim da história, Anselmo acaba por descobrir a verdade e a impertinência da sua curiosidade, e as três personagens morrem, mas isso já não interessa para aqui.

Se referi esta passagem do D. Quixote é porque me parece que o grosso do anti-racismo contemporâneo padece da impertinência do amigo Anselmo. O delírio é de tipo idêntico. A ânsia de em tudo ver manifestações de racismo – a tese do racismo sistémico, ou estrutural, reside exactamente em tal entendimento das coisas – conduz, por um processo reactivo, a uma espécie de legitimação espúria dos comportamentos racistas, tal como a busca de uma prova indisputável da fidelidade conjugal leva à perda do objecto amado. O “anti-racista profissional” não tolera a imperfeição e a precaridade dos arranjos sociais, privando-se do possível que é desejável e que pode ser melhorado em nome de um impossível que o faz alucinar o mal em todo o lado.  Como se diz, o que é demais é erro, e o erro aqui é a produção de um efeito contrário ao desejado.

Durante anos, e apesar de embirrar com a coisa, que tem algo de patológico, como todas as monomanias, fui pensando que, apesar de tudo, o “jornalismo de causas” poderia ter, mesmo que em pequena escala, um efeito positivo sobre os costumes. Inocência minha. Hoje – ao ler, por exemplo, os artigos da jornalista Joana Gorjão Henriques no Público – estou convencido que os resultados negativos anulam por inteiro o que possa haver de salubre na intenção. A metamorfose do delírio de Anselmo, da sua ideia fixa, numa cruzada contra um racismo omnipresente e comprometendo o todo da sociedade, o folclore ridículo do “Não passarão”, ameaça lançar, quanto mais não seja por pura reactividade, indivíduos pacatos nos braços de quem os prometa salvar da opressão de uma opinião selvagem e inquisitorial, da qual a falada “monitorização do discurso de ódio” é apenas a expressão mais soft. Se é por aí que os nossos professores de costumes querem ir, visando a “descolonização das mentalidades”, como sugere o antropólogo Miguel Vale de Almeida, convém avisá-los que estão a ir por muito mau caminho.