1. A tendência dos apoiantes da Geringonça para construírem realidades paralelas onde a lei e a regra dos comuns mortais não se aplicam não pára de surpreender. Desta vez, está em causa o facto do pai José Vieira da Silva e da filha Mariana Vieira da Silva passarem a partilhar dois assentos no Conselho de Ministros — o que agrava o ambiente familiar do Governo que já conta com o casal Eduardo Cabrita e Ana Paula Vitorino.

Das reações dos apoiantes deste Governo que fui lendo nos últimos dias, uma das que mais me impressionou foi a de Daniel Oliveira. Filho de Herberto Hélder, um dos maiores poetas portugueses desde Fernando Pessoa, Oliveira fez questão de recordar o seu caso pessoal para dizer que Mariana Vieira da Silva não pode ser prejudicada por ser filha de quem é.

Se se tivesse ficado por aqui, estaria tudo bem. Mas não. Daniel Oliveira decidiu criar uma espécie de narrativa de vitimização segundo a qual um filho de uma figura pública tem de provar duas vezes o seu valor para não ser acusado de ter sido favorecido.

Não deixa de ser ridículo que se tente fazer de Mariana Vieira da Silva (ou de Daniel Oliveira) vítimas para tentar ‘virar o jogo’ quando, na realidade, são claramente privilegiados — e esta não é uma crítica, é uma constatação de facto.

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Os pais de Daniel Oliveira e de Mariana Vieira da Silva fazem parte de uma minoria que frequentou o ensino universitário na respetiva geração. Uma maioria clara dos portugueses nascidos entre os anos 30 e 60 do século passado têm como nível médio a 4.ª classe. Ou seja, Daniel e Mariana cresceram no seio de uma família de licenciados, de letrados, com rendimentos acima da média, o que lhes permitiu ter acesso a informação e a uma cultura que a maioria dos portugueses da mesma idade que Daniel e Mariana não tiveram.

Portanto, quem teve de trabalhar a dobrar, a triplicar e a quadruplicar para subir no chamado elevador social não foram Daniel e Mariana. Foram os outros que tiveram pais com a 4.ª classe, que tiveram de se deslocar do interior para o litoral, que tiveram de deixar a sua família para trás e, com a ajuda desta, partir em busca de uma educação que lhes permitisse ter uma vida melhor. Estes não são vítimas mas certamente que não fazem parte de um grupo de privilegiados como Daniel e a Mariana, já agora.

Portanto, lamento mas não tenho pena dos ‘coitadinhos’ do Daniel ou da Mariana. E dos seus discursos de falsas vítimas.

2. São contra, e bem, a entrega da Chefia do Estado tendo como única referência o sangue e as relações familiares, mas não vêem problema em que marido e mulher sejam ministros do mesmo Governo e em que o pai e uma filha partilhem a mesa do Conselho de Ministros. Moral da história: dizem-se republicanos mas atuam como monárquicos.

Pode-se alegar que Mariana tem mérito próprio e que não pode ser prejudicada pelo facto de ser filha de quem é. Pode-se também alegar que Vieira da Silva ou que a mulher Ana Paula e o marido Cabrita já tinham tido passagens pelo Governo em pastas diferentes das atuais, logo têm experiência governativa que não pode ser colocada de parte pelo facto de serem marido e mulher. Estes são, com toda a certeza, argumentos válidos.

Mas a questão que Miguel Poiares Maduro levantou no Jornal de Notícias também é pertinente — e, na minha opinião, sobrepõe-se claramente aos argumentos dos geringonços. O Conselho de Ministros é um órgão colegial que recebe, analisa e discute a legislação fundamental do país. Uma parte dessa legislação, com base nas competências legislativas do Executivo, é ali concluída e aprovada. Outra parte é debatida para ser aprovada mais tarde pela Assembleia da República.

Isto é, os ministros emitem opinião sobre os diplomas que os seus colegas apresentam e podem (e devem) criticar o que entenderem por não respeitar o interesse público ou ir contra a mensagem política essencial do Governo.

É fácil, portanto, imaginar qual será a independência para Mariana Vieira da Silva criticar um diploma apresentado pelo seu pai ou tentar perceber que Eduardo Cabrita conseguirá emitir um juízo de valor minimamente objetivo sobre os diplomas que a sua mulher Ana Paula Vitorino propõe.

Acresce que a ministra da Presidência do Conselho de Ministros coordena toda a legislação produzida pelo Governo — é esse o seu papel principal enquanto membro do Governo. Portanto, tem de coordenar com o seu pai tudo o que é produzido pelo Ministério da Segurança Social.

Se as situações acima descritas não são conflitos de interesse, pela impossibilidade factual de uma filha não poder ser imparcial a avaliar o trabalho de um pai ou de um marido avaliar a sua mulher, não sei o que será um conflito de interesses.

3. Entrando no campo da lei, é importante recordar que existe o Código do Procedimento Administrativo — ou seja, que regula a forma como a Administração Pública se relaciona com os particulares.

Diz o artigo 69.º que “os titulares de órgãos da administração pública e respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, do Código de Procedimento Administrativa se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública (…) quando (…) nele tenham interesse o seu cônjuge ou (…) algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral”.

É, portanto, claro que existem impedimentos legais para que, por exemplo, um dirigente de um órgão tutelado por Mariana Vieira da Silva não possa participar num processo em que “algum parente em linha reta” (como um pai, por exemplo) intervenha.

Na prática, o primeiro-ministro António Costa acabou por criou uma espécie de regime especial para o seu Governo. Uns (a Administração Pública) têm regras claras que impedem conflitos de interesse que colocam em causa a sua independência e imparcialidade, outros (o Governo) vivem numa espécie de mundo acima da lei que regula os seus subordinados sob o aplauso geral de boa parte dos comentadores e imprensa. Parece que o facto de Mariana Vieira da Silva, como Nuno Garoupa e Luís Aguiar Conraria recordaram nas redes sociais, ser boa a acalmar as fúrias de António Costa é claramente um atestado da sua competência — e de exceção face à lei geral.

Obviamente que o que está aqui em causa não é uma matéria que apenas diz à “Mariana” ou ao seu pai “José” — ou ao “casal Eduardo e Ana”. É uma questão institucional, legal e bastante básica de qualquer República que ao mesmo tempo é um Estado de Direito. Daí o conflito de interesses que se verifica que é tão óbvio que só António Costa é que não vê.

Já sabemos que o conceito de conflito de interesse é encarado em Portugal como algo exótico — próprio dos burocratas de Bruxelas ou dos países do Norte da Europa. A nossa cultura gosta mais da “cunha”, do “gajo porreiro” do que de regras claras para todos que permitam seleções profissionais ou políticas justas que têm o mérito como principal vetor.

Mas não é preciso exagerar, como fez António Costa.