A frase que reivindica a medida é de cortar o coração. O Governo tem de garantir “as reformas por inteiro a quem começou a trabalhar criança”. Ouvimos no Parlamento a líder do Bloco de Esquerda apelar a essa decisão, com a voz colocada no tom certo para todos sentirmos profundamente a injustiça de não dar aos nossos concidadãos, desprotegidos no nascimento, essa possibilidade. A medida foi aprovada pelo Governo e anunciada. O BE pôde mais uma vez dizer que conquistou, a ferros, mais justiça social, mais igualdade. Se não fosse ele nada disto teria acontecido. (Ninguém se lembra, ou não se quis lembrar, nesta fase, que essa bonificação para quem começou a trabalhar muito novo já existia).
Eis se não quando o diploma que concretiza a medida é publicado. Afinal o Governo dá com uma mão aos que “começaram a trabalhar crianças” e tira com a outra. De tal maneira que o novo regime, supostamente mais generoso, até pode ser, em alguns casos, pior do que o anterior. Nenhum problema, responde o Governo. Passa a existir um menu, o candidato a pensionista com muitos anos de descontos escolhe o mais favorável, oficiosamente.
A notícia foi revelada pelo Jornal de Negócios. No regime antes desta conquista, exemplifica o Negócios, uma pessoa que tivesse começado a trabalhar aos 14 anos e se reformasse aos 64, perfazendo 50 anos de descontos, teria uma penalização na pensão de cerca de 14%, por via do factor de sustentabilidade, mas também uma bonificação pela sua longa carreira contributiva. No novo regime, pedido pelo Bloco, o Governo acabou com a penalização mas, sem nada dizer, também eliminou a bonificação.
Quais foram as reacções? O Governo, que tem no ministro Vieira da Silva a tutela deste assunto, diz logo ao Negócios que as pessoas podem optar pelo regime que lhes seja mais favorável, escolhendo a lei anterior de forma “oficiosa”, o que quer que isto signifique. Uma espécie de menu para complicar ainda mais as complexas teias da segurança social.
O Bloco de Esquerda pede, timidamente, explicações, mas dizendo pelo meio que o objectivo que tinha foi atingindo. Agora já não é bem a justiça para com quem começou a “trabalhar criança”. Acrescentam-se tons de conflito geracional ao afirmar-se que o objectivo “é permitir que as pessoas deixem de trabalhar, tenham acesso à reforma por inteiro, respeitando simultaneamente as gerações mais velhas e dando oportunidades de trabalho às gerações mais novas” como se pode ler aqui. Em linguagem menos polida, estamos perante o “dêem dinheiro aos velhos para eles deixarem de trabalhar e darem lugar aos mais novos”.
Mantendo a linguagem directa: as pessoas foram enganadas, pelo Governo seguramente, pelo Bloco não sabemos. Quem acreditou, naquilo que os protagonistas políticos disseram, foi pedir a sua pensão e pode não ter feito as contas com o regime anterior. Como se esperava, as reacções mais criticas foram do CDS, que designou a medida como um “logro”, do PSD e do PCP
Poderíamos passar ao largo deste caso se ele fosse uma excepção. Mas aos poucos – como diz a sabedoria popular, a verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima – vamos sabendo de mais este e aquele caso. Muitos são difíceis de provar. Uma política ilusionista eficaz é aquela que diz que está a tomar medidas que afectam grupos não organizados e, por isso, é praticamente impossível verificar se é assim ou não. Por exemplo, vamos ouvindo alguns pensionistas a queixarem-se que não foram aumentados, mesmo levando em conta o fim dos duodécimos. Mas como confirmar que isso não é apenas um caso isolado?
Outros casos há em que o tratamento estatístico gera controvérsia. Exemplo disso é a alteração no IRS, que passou a estar em vigor com o Orçamento do Estado para 2018. As simulações realizadas pela Comissão Europeia (que podem ser lidas aqui na página 27 ou nesta notícia) mostram que esta reforma do IRS é regressiva, ou seja, agrava a distribuição do rendimento, beneficiando mais as classes de rendimentos mais elevados. Os impostos descem mais para quem ganha mais e trabalha por conta de outrem, porque falta aqui a análise dos trabalhadores independentes.
O Governo, pela voz do ministro das Finanças, não desmente a Comissão Europeia. Diz que a sua análise é “incompleta”, que deveria olhar para o período de 2016 a 2018 e não apenas para o que se vai passar este ano. Conclusão: as medidas deste ano no IRS beneficiam mesmo os que têm rendimentos mais elevados, apesar de terem sido apresentadas como atingindo o objectivo exactamente oposto. Decisões destas, sem que se oiça uma palavra do PCP e do Bloco de Esquerda seriam impensáveis noutros tempos. E aqui temos mais um exemplo do ilusionismo que se tem praticado na governação.
Outros dossiers revelam exactamente as mesmas características, de ilusionismo, de expectativas criadas que não se concretizam e, em termos gerais, de infantilização da sociedade. Transformando-nos em incapazes de compreender que o Estado não tem, de facto, dinheiro para fazer aquilo que o Governo está a prometer. Que a ideia de que havia outra alternativa, por contraponto ao não há outra alternativa (retirado da expressão em inglês There Is No Alternative, TINA), é viável em tudo menos quando não há dinheiro.
É nesta ilusão de alternativa que a prometida integração dos precários se vai atrasando, assim como a aplicação as progressões nas carreiras. É por isso que a Saúde se vê congelada e com necessidade de ser chamada aos rigores financeiros das estratégias cativadoras de Centeno. É também por isso que se arrastaram os processos das vítimas de Pedrogão, que só o Presidente conseguiu acelerar para vermos agora em Março o pagamento das primeiras indemnizações às vítimas. Mas faltam ainda os feridos.
Do ponto de vista da política pura, a actuação deste Governo é digna de admiração e justifica que, quando a poeira do tempo e da ilusão se desvanecer, se estude como se pode ser eficaz na arte de iludir. Claro que sem a ruptura de regime, que António Costa conseguiu, a que destruiu o muro entre o PS e o PCP, seria muito mais difícil criar estas ilusões. Neste momento teríamos muito mais informação sobre o que se está a passar na Saúde, na Educação, nos aumentos de rendimento que se prometem e não acontecem.
A aproximação das eleições – estamos a pouco mais de um ano das europeias – obrigará o PCP, muito mais do que o Bloco de Esquerda, a assumir de novo o seu papel de denúncia das injustiças, com os sindicatos que são seus, mas também a olhar para os pequenos negócios e aqueles que estão mais esquecidos. Foi o caso do último alerta de Jerónimo de Sousa para a estratégia que o Governo está a seguir nos incêndios. Estamos a assistir a “uma gigantesca operação de desresponsabilização propaganda” na limpeza das florestas, denunciou o líder do PCP, considerando que o Governo quer que a responsabilidade de uma eventual nova tragédia caia sobre os proprietários e as autarquias. Uma estratégia que já se tinha percebido.
Sendo de elogiar a eficácia desta forma de governar – eficácia essa que está traduzida nas intenções de voto que as sondagens dão ao PS –, é de lamentar que se esteja a infantilizar os portugueses, tratando-os como incapazes de compreender que não há dinheiro para tudo. Pior do que isso, impedindo que se instale na sociedade uma cultura de exigência com a forma como se usa o dinheiro público.