Há assuntos propriamente infinitos, onde, mesmo quando pensamos que já nada nos pode surpreender, nos arriscamos a descobrir novas coisas: o sofrimento e a loucura, por exemplo. Deixemos de lado o sofrimento – o Livro de Job não precisa de ser reescrito, embora esteja sempre a ser actualizado – e pensemos um pouco na loucura. Mais exactamente, num tipo de loucura particular, aquela que quase se confunde com a estupidez elevada ao grau de arte sistemática.

Certas reacções à invasão da Ucrânia pela Rússia oferecem-nos um vasto fresco deste singular tipo de loucura. Tudo aí se encontra: o amor desmesurado pela força bruta; o desprezo incontido pela debilidade das democracias; a transformação metódica e disciplinada das causas em efeitos e dos efeitos em causas; a sofisticação de pacotilha a que uma certa aparência de “realismo” permite ascender; a ridicularização altaneira do heroísmo, e de Zelensky em particular; e por aí adiante. Em tudo isto, vemos uma certa esquerda e uma certa direita, os filhos de Cunhal e os filhos de Salazar (mais os inconscientes do que os conscientes), de mãos dadas, exibindo a comunidade de valores que em muitas coisas os caracteriza.

Como em relação a um quadro, convém procurar descobrir o tema que une as suas diversas partes, ou, se se preferir, o ponto de vista que engloba o maior número de percepções. É importante para se perceber o que há de comum a tantos indivíduos que manifestam particularidades tão extremas como as figuras que povoam certas telas de Bosch. O que é que une o homem-peixe, o homem de bico de ave, o casal que navega no peixe voador, para lá da loucura que palpavelmente os habita?

Cada um terá, no capítulo, a sua ideia própria. Ofereço a minha, tentativamente. O que há de comum ao tipo de reacções enumeradas no segundo parágrafo é o todas elas suporem, em maior ou menor grau, a convicção de que o facto bruto em si mesmo, a invasão da Ucrânia pela Rússia, só pode ser encarado se tivermos em conta alguns movimentos invisíveis que as descrições públicas dos factos e as imagens que as acompanham não só não revelam, como têm por missão essencial ocultar.

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A tarefa de trazer à luz esses movimentos invisíveis faz de quem se dedica à tarefa um verdadeiro testemunho, um mártir no sentido literal da palavra. E, como convém aos mártires, são criaturas que se sentem perseguidas pelos que confiam nas aparências visíveis, como, por exemplo, as imagens das cidades destruídas, e daí deduzem uma distinção nítida entre o agressor e o agredido, tomando partido pelo agredido.

Sabemos quais são para eles os movimentos invisíveis que a visibilidade aparentemente oculta. São os movimentos levados a cabo pelos E.U.A. e pela NATO, sendo que os primeiros, mentores da segunda, são a verdadeira e única causa responsável pela invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin. Esta doutrina da causa única – e repito algo que já disse num artigo anterior – é uma doutrina comum a todas as teorias conspiratórias. Os actuais mártires, que não se deixam enganar pelas aparências e que conhecem de ciência certa o invisível, sejam eles de esquerda ou de direita, são, no fundo, vulgares adeptos de teorias conspiratórias. Conhecem as causas que os outros ignoram. Não se deixam, ao contrário do vulgo, enganar. O benefício narcísico que dessa posição retiram é indisputável: são mais inteligentes, mais perspicazes, mais advertidos, e, como gostam de sublinhar, mais sabedores que os outros. Não caem na esparrela em que o comum cai.

(Haveria aqui a lamentar que o pouco de marxismo, como coisa distinta do leninismo, que sobrevive no pensamento da esquerda contemporânea – é, de facto, pouquíssimo – tenha, para que essa mesma sobrevivência seja possível, de se apresentar sob as vestes de uma teoria conspiratória. Não há talvez sinal tão óbvio da decomposição de uma doutrina como a necessidade de se caricaturar a si mesma, ao ponto do grotesco, para se manter presente na sociedade.)

Quer isso dizer que os nossos queridos mártires se concebem como indiferentes aos sofrimentos dos ucranianos? Não, de modo algum. Pelo contrário. São eles que melhor compreendem o sofrimento, até porque lhe conhecem as verdadeiras causas e as podem em detalhe explicar. Sabem de cor e salteado todas as manobras da ganância e do terrível apetite do lucro que se praticam no universo invisível do qual possuem um mapa detalhado que não se cansam de exibir. Conhecem em detalhe todos os demónios que habitam o invisível e o poder imenso de que gozam e que lhes permite terem o mundo ao seu dispor. Tudo o que sirva para contrariar tal poder é, por definição, bom. Tanto saber concede-lhes, como disse, a possibilidade da compreensão e explicação do sofrimento e a autoridade para pedirem aos ucranianos que se submetam ao poder russo em nome desse bem incondicional, a paz, que não cessa de lhes sair da boca.

Os adeptos desta curiosa loucura fazem lembrar os antigos amigos de Job. Recordar-se-ão que, certos de que o seu saber era maior do que o de Job, estes lhe explicavam que o seu sofrimento fazia sentido, que as causas deste eram inteligíveis e compreensíveis. Nenhuma coisa acontecia no mundo sem que um motivo a justificasse. A sua verdadeira estupidez ontológica (vale a pena utilizar a palavra) face ao sofrimento alheio manifestava-se na sua tagarelice pedante e obscena. A única grande diferença entre os velhos e os novos amigos de Job é que Deus apareceu aos primeiros e lhes censurou a soberba de lhe pretenderem conhecer os desígnios. Duvido que apareça aos segundos. Duvido mesmo que alguém os puxe pelas orelhas até Mariupol, Bucha, Kharkiv ou qualquer um dos vários locais da Ucrânia que as tropas russas impiedosamente destroem e onde os cadáveres juncam as estradas e apodrecem nas valas comuns. Num certo sentido, é pena: às vezes o contacto directo com o visível cura as loucuras da alucinação do invisível.