Foi um discurso genial, o de Marcelo Rebelo de Sousa neste 25 de Abril de 2021. Em que cada um ouviu o que quis ouvir e, assim, se uniu. O Presidente da República, até pela sua história, como o disse, compreende como poucos que há portugueses diversos. Há portugueses que ficaram prisioneiros da maior parte da vida que viveram no Estado Novo, em que lhes disseram que deviam e estavam a defender a Pátria e, por ela, estão com feridas incuráveis. Há os portugueses que pagaram com o exílio e a prisão a sua luta contra essa visão ditatorial da Pátria e que têm igualmente feridas incuráveis. Há as novas gerações que dessas feridas só têm a memória emprestada e que podem escolher um ou outro lado, ou até nenhum preferindo olhar para a frente, conforme a história das suas vidas.
O Presidente falou para todos, parecendo colocar-se ora de um lado ora do outro. Mas estando inequivocamente contra os extremismos. De um lado, os excessos de olhar o passado com os olhos do presente que levaram, por exemplo, à condenação de um combatente da guerra colonial apenas porque era negro – há atitude mais racista do que esta? Do outro os excessos dos que evitam olhar para o mal que fizemos aos países que foram colónias.
Este é apenas um tema simbólico, o Presidente tem de o saber bem. Mas é um tema que alimenta também a divisão e o populismo que políticos com responsabilidade e experiência têm sido incapazes de combater eficazmente. O Chega só existe, nos votos que teve e nas intenções de voto das sondagens, porque há cada vez mais pessoas a olhar para as elites do regime como as grandes responsáveis pelas suas dificuldades e por aquilo a que assistem. Ou, como disse Rui Rio num discurso que tocou igualmente em pontos fundamentais da nossa actual vida em comum: “não será com cordões sanitários nem com artigos explosivos de opinião” que se vencerá o populismo e radicalismo, tem de se “combater as raízes do seu aparecimento”
E as raízes do seu aparecimento estão em acontecimentos e discursos deploráveis, que promovem a divisão, que geram a revolta.
É assistir-se a uma justiça que não funciona – ou funciona apenas para a classe média e baixa sem ligações às elites – e que ninguém parece querer que funcione, nomeadamente com as dificuldades que criam em criminalizar o enriquecimento sem causa.
É assistir-se ao desrespeito total pelas instituições com o partido que está no poder, o PS, a invadir todo o aparelho do Estado sem sequer se dar ao trabalho de disfarçar – o mais recente caso é o da Segurança Social, mas vimos isto no Banco de Portugal, no Tribunal de Contas, na Procuradoria Geral da República, no Conselho das Finanças Públicas.
É assistir-se ao impedimento da Iniciativa Liberal de participar na descida da Av. Da Liberdade em Lisboa, por parte da Associação 25 de Abril.
É assistir-se à marginalização de quem critica, com sérios riscos de se instalar no País uma sociedade de medo de ficar sem emprego por se atrever a criticar os governantes ou partidos que estão com o Governo.
É assistir-se a criticas ao socialista Sérgio Sousa Pinto por participar num painel, da conferência Movimento Europa e Liberdade, que antecede uma intervenção do líder do Chega André Ventura. Nem o nome do painel, “A intolerância cultural e a ditadura do politicamente correto”, fez com que quem criticou Sérgio Sousa Pinto pensasse duas vezes no que estava a fazer, no facto de estar a mostrar como é actual esse tema.
E não, contrariamente ao que disse o presidente da Assembleia da República, “o combate contra o chamado politicamente correto” não esconde “o saudosismo pelos tempos de impunidade da violência doméstica, da supremacia racial, da homofobia, do desprezo pela dignidade e pela individualidade dos outros”. Ferro Rodrigues tem sido, aliás, um exemplo do que não se deve fazer se se quer combater os radicalismos. Tem sido um dos amigos dos populistas.
Hoje, na sociedade portuguesa, é difícil encontrar essas pessoas que Ferro Rodrigues diz serem a favor da violência doméstica, homofóbicas, racistas e contra a liberdade individual. É não querer ver o que se passa na sociedade portuguesa e não perceber como o seu discurso, que retrata um país que esmagadoramente não existe, irrita os portugueses e os coloca a votar “contra” em vez de votarem construtivamente.
O que causa enorme perplexidade no discurso que domina as redes sociais e o espaço público, e no exemplo da critica a Sérgio Sousa Pinto, é não perceberem que eles, sim, estão a colocar-se do lado dos ditadores. Liberdade de expressão não é apenas para aqueles com quem concordamos, a liberdade é especialmente difícil de exercer com aqueles com quem não concordamos.
Não podemos transformar o risco do populismo no risco de impormos uma das ditaduras mais perigosas de todas, a que se exerce numa democracia que se torna formal. Não podemos criar uma sociedade com franjas da sociedade com medo de emitirem as suas opiniões ou corremos o sério risco de não perceber o que se está a passar e, repentinamente, elegermos alguém como Trump. Foi assim na América.
Há na sociedade portuguesa actual sinais preocupantes que não nos sossegam quanto à efectiva intenção de combater os populismos. Aquilo a que assistimos parece pretender manter o monopólio de alguns discursos, impedindo que outros, com ideias diferentes, mas igualmente livres, igualitários e multiculturais, possam também ser ouvidos.
A ausência de interesse em resolver o problema da Justiça – que até a União Europeia estabelece como condição para se aceder aos recursos do fundo de recuperação e resiliência – é um contributo para o populismo. O combate contra o racismo e a xenofobia não pode dar aos cidadãos a ideia de que se está a proteger pessoas que cometem crimes. O conhecimento da história não pode traduzir-se na condenação dos que se viram como defensores da Pátria, como não pode condenar os que combateram a ditadura.
O Presidente da República percebe o que se está a passar. O seu discurso neste dia 25 de Abril de 2021 mostrou isso mesmo. Os novos extremistas estão onde dizem não estar, estão entre aqueles que se mostram hoje menos amigos da liberdade sob a capa de a defenderem. Têm sido, nos últimos tempos, os melhores amigos do populismo e a principal ameaça à democracia. Os novos extremistas precisam de aprender a democracia e a liberdade, precisam de ser tolerantes e têm de se preocupar com o povo que alguns deles representam.