Um cartaz político do Partido Socialista, presente há várias semanas em diversos pontos da cidade de Lisboa – e, presumo, em outras cidades do país – pôs-me a pensar na tradição pictórica da representação de santos. De características barrocas – horror ao vazio é patente – o cartaz é maioritariamente preenchido por imagens difusas de figuras humanas envergando bandeiras, ramos de flores ou erguendo os braços. Percebe-se que estão ali em representação do povo. Ao centro, Pedro (Nuno Santos) parece estender as mãos em pose de dádiva na direcção dos que o procuram. Os mais distraídos tomarão a posição das mãos como o prenúncio de um aperto de mão, mas um olhar mais atento permitirá perceber que foi concedida ampla latitude a uma abordagem simbólica: a ausência de um sorriso; o olhar perdido no horizonte; o esfíngico perfil; a barba grisalha; as mãos elevadas; a luminosidade obliqua – tudo concorre para imprimir pathos à composição. A imagem central de Pedro é acompanhada por uma bandeira de Portugal em plano anterior – ou seja, mais próximo do pintor-fotógrafo – amplificando a mística subjacente à tela, corolário de um clímax dramático próprio de uma narrativa sacrificial: “Eu, Pedro, lutarei e sofrerei por vós rumo ao progresso”.
Em 1995, Thomas Sowell escreveu um livro a que deu o título de “The Vision of the anointed”. Numa das epígrafes, Sowell cita Hamlet: “Lay not that flattering unction to your soul”. A frase é proferida por Hamlet no III Acto, pedindo à rainha, sua mãe, que evite a vaidade que a impede de ver quem é Cláudio. “Unction” remete para unção: o uso dos Santos Óleos para marcar a presença, a pertença e a benção de Deus sobre os eleitos. Quem são os ungidos e de que visão nos fala Sowell? Sowell identifica-os como os que escolheram adoptar uma visão de rectidão diferencial. Dito de outra forma: os que, apetrechados de qualidades supostamente exclusivas, se elevaram moralmente aspergindo sobre si próprios o unguento santificador, ponto de partida para uma cruzada irrestrita contra “o outro”.
A questão é antiga mas continua a ser a mãe de todos os equívocos em matéria de debate político, tenha este lugar nas grandes planícies ou nos salões mais ínclitos: achar que a bondade, a compaixão, o apego à verdade, a boa-fé, a preocupação com o seu semelhante, são características que por ablação à nascença ou deformação induzida se encontram ausentes do espírito dos que insistem em não adoptar o “dogma”, ou seja, aquilo que os ungidos perscrutam e assinalam de virtuoso e distintivo. Qualquer discussão sobre métodos, meios, probabilidades, modelos, evidências empíricas, relações de causalidade, etc. é, neste cenário, um exercício inútil e higienicamente desaconselhado.
Isto é particularmente notado à esquerda. Sowell lembra a forma como os adversários políticos de Jean-François Revel (um socialista que transitou para o liberalismo) se referiam a ele como “alguém com traços residuais de homo sapiens”. E recorda a incredulidade e o sobressalto que a ideia “contranatura” de um Milton Friedman genuinamente preocupado com a pobreza, a poluição e a guerra, provocaria no seio da intelligentsia. Uma vez adoptada, a visão dos ungidos tende a desclassificar ou a desumanizar os seus oponentes por um perverso salto lógico assente na presunção do papel daqueles no mundo, consequência última do descontrolo dos egos.
Sowell identifica a presença de elementos recorrentes no modus operandi dos ungidos: alegações sobre perigos tremendos que escapam à preocupação dos simples; a necessidade urgente de agir face a catástrofes iminentes; o apelo para que o Estado e/ou o Governo controle ou ponha fim ao comportamento desviante dos que parecem empenhados em contrariar as conclusões previdentes de uns poucos; a rejeição desdenhosa de argumentos contrários, tidos como não informados e irresponsáveis, ou motivados por intenções indignas.
Os ungidos habitam um sistema fechado, impenetrável à dissensão, à imaginação e ao escrutínio. A árdua tarefa de tentar outros pontos de vista e de compreender razões alheias a quadros valorativos familiares, não se compadece com aqueles cuja consciência se compõe dos seus próprios desejos e da projecção das suas próprias virtudes. A visão dos ungidos é uma visão ofuscada pela luz da sua própria soberba. Os ungidos emanam um característico odor a cobardia travestida de integridade, e ostentam uma vertigem totalitária para negar ao arbítrio humano a participação nos sucessos do mundo. São, no fundo, control freaks numa trip de egomania, fortemente empenhados em preservar as suas coutadas de pureza moral, de pendor eugénico, e a visão normativa que estão dispostos “a oferecer” ao mundo.
A recém vitória de Trump gerou uma atmosfera propícia ao tipo de reacções imanentes ao quadro mental de um ungido clássico, pontuadas por lampejos de incompreensão e pavor. O ungido tende a não compreender como pode alguém arriscar uma escolha distinta da preconizada pela sua visão, e as poucas tentativas de interpretação acabam sempre no labirinto do odioso (“garbage”) & da desqualificação (“dumb america”). Não lhe ocorre que a sua incompreensão é produto de um distanciamento asséptico auto-induzido que anula qualquer esforço conceptual inteligível e ligado ao mundo. Não percebe, por exemplo, que prédicas de “celebridades 1%” dirigidas à ralé vítima da inflação, ressoam a paternalismo. E que não basta apregoar bons pensamentos. Até um palhaço é mais genuíno.
Lisboa, 06/11/2024.