No meio dos debates reacionários que têm corrido por todo o lado empurrando as mulheres para a cozinha e para a sala de partos, tentando instituir normas sociais que as arredem crescentemente dos trabalhos mais bem pagos e da participação política, não devemos esquecer os homens. Porque os constrangimentos sociais e culturais que se querem enrijecer sobre a liberdade das mulheres têm os mesmos efeitos na diminuição da liberdade dos homens. A relação mais próxima e mais afetuosa com os filhos – que é criada apenas com o toque de pele, os banhos, as papas que se dão, as histórias que se leem à noite – é-lhes vedada, para os remeter somente ao mundo laboral e para pináculo da autoridade familiar, em versão distante e ameaçadora.
É certo que somos um país machista e muitos homens preferem o descanso de ver o futebol do que participar no cuidado dos filhos e ganhar uma relação muito mais íntima e próxima. Mas, graças aos deuses, há muitos outros que não são wannabes de Archie Bunker. Em boa verdade, nos meios onde tenho a sorte de me mover, são a maioria. Pelo que decidi trazer dois exemplos.
Um (mais rápido de descrever) é Luís Pais Antunes, managing partner da PLMJ. É ele o cozinheiro (e que cozinheiro) lá de casa nos jantares de todos os dias e também aos almoços familiares de fim de semana (que incluem quatro crianças e adolescentes e, ocasionalmente, mais dois filhos adultos). Apesar da profissão exigente, raramente aceita compromissos que impliquem passar o serão longe da família. Nos dias em que a mulher, Sofia Vala Rocha, tem aulas de mestrado em horário pós-laboral ou atividades políticas, os filhos ficam somente à sua responsabilidade. Não usa o argumento ‘o meu trabalho é mais importante que o teu’ para se esquivar a não estar e não fazer.
Outro é um amigo meu, Diogo, pai de seis filhos. Há um ano e meio entrou voluntariamente num programa de rescisões amigáveis que o banco onde trabalhava oferecia. E dedicou-se à família. Os rendimentos mensais vêm do ordenado da mulher (trabalha noutro banco) e da rentabilização de algum património imobiliário – que lhe ocupa muito pouco tempo, sendo o resto aplicado na família. As refeições e as compras estão a cargo de Diogo (e almoçam todos os dias em casa o casal e os três filhos mais velhos, às vezes com amigos), as questões com as escolas da criançada também, as idas aos médicos, o apoio emocional aos filhos. A cargo da sua mulher estão as roupas das crianças. A população familiar sub-15 ajuda nas tarefas, bem como uma empregada (externa).
Foi uma decisão do casal. A carga com os filhos foi aumentando e, ambos trabalhando por conta de outrem, não chegavam a todo o lado. As famílias numerosas dantes tinham o apoio das redes das famílias alargadas. Agora não têm e, como diz Diogo, também não querem ter – porque com a ajuda da família geralmente vêm condicionantes que impedem a autonomização do casal e dos filhos. A sua mulher sempre se opôs a deixar de trabalhar, apesar de o terem ponderado. E foi Diogo que, no fim, não quis ir por esse caminho de reforçar os papeis tradicionais de pai e mãe. Afinal, diz, tantas vezes sairmos dos papeis mais confortáveis é mais interessante para os caminhos de desenvolvimento pessoal.
Este novo formato exigiu adaptação a Diogo, com desorganização inicial, à medida que ‘a carga mental que as mulheres têm’ passava para ele. Afinal Diogo vem de uma família tradicional, aristocrática, dele se esperava que tivesse um trabalho que lhe desse projeção social. Atualmente está satisfeito, gosta de não chegar a casa stressado ao fim do dia, a relação com os filhos melhorou, sobretudo pela possibilidade de almoçarem juntos todos os dias. E tem tempo para dedicar ao ativismo que lhe está debaixo da pele: desde a associação de pais (de que é representante no conselho geral do agrupamento) até ao conselho pastoral da paróquia (no banco tinha sido delegado sindical).
Pelo meio, Diogo conta que não abdica da sua autoridade como pai, nota a falta de referência masculina em algumas crianças e protesta pela organização atual do trabalho, que retira a presença afetiva de pais e mães e os alienam da construção da personalidade dos filhos. Ah, e, claro, assume que só pode estar com esta nova forma de vida porque financeiramente é um privilegiado.
De resto, esta liberdade que os homens exercem de escolherem ser pais, participar nas tarefas cuidadoras e afetivas com os filhos parece estar só ao alcance de alguns. De certo modo espelha, em simétrico, o que sucede com as mulheres que têm filhos: para terem uma carreira intensa, precisam de ter uma estrutura familiar que apoie, e recursos para pagar ajuda doméstica. No caso dos homens, há que ter capacidade financeira (que eventualmente até substitua um ordenado) e status (social, educacional, económico) que não se sinta beliscado pelas tarefas caseiras.
Da parte do vil metal não nos cabe agir. Porém numa sociedade civilizada é de bom tom propiciar aos homens a liberdade de escolherem cumplicidade e proximidade com os filhos e uma vida profissional menos alienante.