Já andava desconfiada. Mas confirmei estes dias que o mercúrio do grau de indignação nas redes sociais e nos fóruns das tv’s e rádios é ideológico. Muda de cor conforme os envolvidos. O barómetro não podia mesmo ser mais preciso. Chegou ao ponto mais denso do vermelho com a notícia de que Passos Coelho ia dar aulas num mestrado de Administração Pública no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Exatamente a mesma linha de vermelho atingida quando Vítor Gonçalves fez na entrevista da RTP aquela infame pergunta a José Sócrates sobre como vivia agora e como pagava as contas o ex-primeiro-ministro.

Quando se questionou o curso de Sócrates, blasfémia, as redes das redes sociais e afins indignaram-se até ao limite do vermelho. Quando se noticiou que o engenheiro, que a Ordem não reconhece como tal, autorizou um aterro suspeito, blasfémia, a indignação também foi geral. Quando esse mesmo homem, com um empréstimo de cem mil euros (confessado pelo próprio), comprou um Mercedes de último modelo e um “master executivo” na Sciences Po em Paris, disse que vivia em casa de um amigo num dos principais bairros parisienses, comia e bebia nos melhores restaurantes, fazia férias luxuosas e vestia nas lojas das grandes marcas (há facturas a prová-lo) e alguém se atreveu a achar estranho, blasfémia, perseguição, houve levantamento de indignação não contra Sócrates, mas sim contra esses hereges.

Se pelo meio o ex-primeiro-ministro ainda conseguiu conciliar os estudos de Filosofia com a presidência do Conselho Consultivo do grupo farmacêutico Octapharma para a América Latina e negociar no Brasil com os seus amigos, nenhum problema foi detectado pelas redes das redes e, blasfémia, o problema foi de quem ousou pôr em causa as suas capacidades para tal emprego. Se começou por receber 12.500 euros por mês mas rapidamente duplicou o ordenado, nada de indignações sociais e, blasfémia, proscritos foram os que questionaram que aqueles valores não eram merecidos ou aqueles negócios não eram éticos. Se mandou escrever um auto-bestseller sobre um tema em que era reconhecidamente especialista, a tortura, blasfémia, incultos apenas os que não acharam tal obra de génio (tal como a seguinte, sobre drones). E então quando alguém perguntou como é que os 2372 euros de subsídio político davam para pagar a renda de uma casa numa das zonas mais caras de Lisboa, os advogados e as restantes despesas, caiu o Carmo e a Trindade (ou os monumentos equivalentes do barómetro destes internautas).

Agora, quando se noticiou que Passos Coelho, três anos depois de ser primeiro-ministro, ia dar aulas numa universidade, repetiu-se exatamente o mesmo índice de indignação. Ai como tal podia ser permitido, que heresia, uma revolta geral no mundo virtual. Mas contra Passos. Que credenciais tem um homem que liderou o país durante uma das suas piores crises para ensinar administração pública, que desplante, contestação geral. Como pode uma faculdade pública contratar um político  ex-deputado, líder de partido e juventude partidária, que esteve à frente de instituições, para ensinar o que aprendeu na prática, que ignomínia. Como se pode pagar um ordenado milionário de entre 3 a 4 mil euros por mês a um homem formado em Economia que não pediu qualquer subsídio público, que afronta. Que interessa que Seguro também lá dê aulas sem que tenha havido um levantamento popular por causa disso, ou que seja melhor ser professor do que receber do Estado sem nada fazer, ui que pecado, multipliquem-se os post’s, os tweets.

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E não, não podemos falar aqui apenas de uma revolta do conservador mundo académico. É mesmo ideologia, como já disse Maria João Marques. Porque há mais casos.

Maria Luís Albuquerque saiu do Governo e foi diretamente para a Arrow e gritaram (e bem) escândalo. Durão Barroso saiu da Comissão e foi diretamente para conselheiro/lobista da Goldman Sachs e gritaram (e bem) escândalo. Vítor Gaspar deixou de ser ministro e enfiou-se logo no FMI e também foi um escândalo. Paulo Portas tornou-se Consultor da Câmara do Comércio aproveitando os conhecimentos como MNE e, ui, que escândalo. Álvaro Santos Pereira deixou a Economia e anos depois concorreu a economista-chefe da OCDE e não deixou de ser um escândalo. Independentemente dos casos, uns mais escandalosos, outros absolutamente legítimos, a tendência foi sempre no mesmo sentido da indignação cibernética.

Mas onde estavam os mesmo indignados quando a EDP pagou 3 milhões para criar um curso especial para Manuel Pinho leccionar uma cadeira na Universidade de Columbia depois do ministro tutelar a empresa? Porque é que o ponteiro deste radar da indignação on-line não mexeu quando Francisco Louçã foi dar umas aulas numa universidade angolana privada? E, fora do mundo académico, porque não subiu o mercúrio deste barómetro com os empregos dos amigos Lacerdas ou das famílias César? E porque é que só ganhou a tal cor rubra contra quem teve coragem para denunciar estes casos?

Defendo períodos de nojo entre a passagem do mundo da política para o dos negócios. Sei que não se ganha muito na política, mas sim depois da política. Não esqueço os grandes escândalos que atravessaram da direita à esquerda, de Dias Loureiro a Celeste Cardona e Relvas, até Armando Vara, Felgueiras ou Carlos Melancia. Mas não tenho os óculos embaciados. Não confundo empregos comuns, com cargos de boys, tachos de milhões ou crimes de aproveitamento político. E vejo uma graduação diferente para as indignações de esquerda e de direita. Parece-me que barómetro das redes das redes está claramente desnivelado. Ou avariado.

Só mais duas ou três coisas

  • O Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO) deu nota negativa a Portugal, depois da resposta quase nula às 15 recomendações que fez há três anos para três grupos específicos: juízes, procuradores e deputados. O Conselho de Prevenção da Corrupção detetou 405 casos de corrupção entre funcionários públicos, entre eles serviços de segurança, entidades da Saúde, Educação, Registos e do Notariado e da Justiça. A Operação e-toupeira (Benfica) passa por corrupção dentro da Justiça, tal como já acontecia com o caso Lex (Rangel) ou Fizz (Manuel Vicente e Orlando Figueira). Mas a ministra acha que é apenas um problema de “avaliação diferente”. Está tudo dito. Vamos no bom caminho.
  • Depois de Fernando Medina ter imposto um imposto inconstitucional em Lisboa. De o Tribunal Constitucional ter vetado e o ter obrigado a devolver esse imposto aos lisboetas. De constitucionalmente ser (incrivelmente) proibida essa devolução com juros. Do presidente da Câmara ter vindo angelicalmente dizer que só não o fazia porque legalmente não podia. De finalmente, ter conseguido dar a volta à burocracia e podido ir em frente com tão nobre intento. Eis que agora só recebe juros quem tiver protestado. E não sei se a novela acaba aqui.