Que “discernia continuamente os tranquilos avanços da corrupção, das cáries, do cansaço” e registava “os progressos da morte, da humidade” – diz-nos Borges daquele rapaz que, no preciso momento em que uma queda de cavalo o condenava à paraplegia, deixou de conseguir pensar por não ser capaz de esquecer: das formas que as nuvens assumiram na alvorada de 30 de abril de 1882 aos fios de espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da batalha do Quebracho, tudo a sua memória fixava com angustiante minúcia, sufocando, logo em semente, qualquer gérmen de ideia, justamente por não ser capaz de generalizar, abstrair, esquecer – em suma, pensar (“Funes, el memorioso”, in Ficciones, 1942). Não é por acaso que o escritor argentino (e também Espinosa), a essa fidelíssima reprodução dos mais ignorados detalhes do mundo, aventou chamar Deus – aquele que, sem alteração nem mudança, pensando-se, é constância, puro logos, motor imóvel, perpétuo hoje, memória do mundo.

Considerando a sujeição humana ao tempo e ao espaço um “justo limite” imposto aos sentidos do corpo como punição pela Queda, Agostinho inaugura esse filão literário que – de Dante a Borges, passando por Cervantes, Milton e Mann – transfigurará o antiquíssimo tema da viagem numa peregrinação interior, único movimento em que o homem, montando-lhe ciladas, é capaz de fixar o presente, capturar o tempo no visgo da linguagem: é infinda a corte daqueles que, tolhidos na enxerga da alma, de olhos postos num prego ferrugento ou numa teia de aranha, nos inventaram mundos.

A tradição clássica, contudo, alheia a esses pruridos, aceitava a sujeição ao espaço, à linguagem e ao eterno devir enquanto condição mesma da existência humana, donde os seus heróis – errantes e imprecisos, avessos a análises psicológicas – fazerem da volubilidade da ação e do discurso aquele território onde o tempo, ainda que precário, revela a sua substância: o caminho, a viagem, a errância – o nostos de Ulisses – garimpam no aluvião do tempo as palavras daquele que, quase sempre in medias res, burila a ousadia de um regresso.

Naquela modéstia que tão bem o caracteriza, Pedro Nuno Santos, homem simples e recatado, escolheu para aquele curto périplo que antecedeu o seu regresso o título mais prosaico de ‘andar por aí’: desconheço a que praias, nesse ínterim, terá a fúria de Poseidon arrojado o seu corpo macerado, mas sei que a sua modéstia e lhaneza (já referi que é um homem simples e recatado?) lhe permitiram purificar o espírito clarividente, elevando-o acima da sordidez de Ciclopes, Lestrigões e das vis seduções de Calipso, a ninfa de belas tranças, de modo a, purgado de paixões e afectos, poder enfim derramar a sua luz sobre todos quantos erram pelas trevas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O que Pedro Nuno ignora – decerto voluntariamente (terei já referido que se trata de um homem simples e recatado?) – é que todos os nossos regressos ecoam, copiam e, esquecendo-o, reinventam o de Ulisses, verdadeira matriz de fidelidade na qual se decanta a memória de um mundo de grandeza porque de profunda humanidade: não fora a fidelidade dos misericordiosos, o que seria da misericórdia? Não é por acaso que a identidade de Ulisses se revela e confirma em sinais – uma cicatriz, um pomar, um leito conjugal que não se move – que são simultaneamente vínculos de presenças que nos afiançam que Ítaca não tem mais que nos dar senão o caminho que nos ofereceu: o mais ousado dos regressos não é o que empreendemos em direção a um lugar, mas o que consente que esse lugar nos permita chegar a nós. Euricleia, Laertes e Penélope são a garantia de que, para que regresse inteiro o homem que partiu, é necessário que uma parte dele nunca tenha chegado a partir.

Na semana em que abriu uma nova pista parlamentar nesta sua piscina política, Pedro Nuno Santos revelou aos praticantes de apneia literária o mare nostrum do género épico, particularmente o da Odisseia. E dificilmente alguém, podendo aventurar-se em águas profundas, se contentará com um patinho de borracha ou com uma bóia numa piscina insuflável que tresanda a cloro.

Bem Pedro Nuno tenta disfarçar as braçadeiras enquanto avalia a temperatura da água na piscina dos grandes: impante de mediocridade, alvoroçado com grandezas protervas – e, portanto, sem humanidade – terá à sua espera imensos porqueiros, mas nenhum Argos. Excitado com marchas triunfais, finda a toada do cortejo, talvez nem mesmo aí perceba que aquele que trai aquilo que recorda, cedo esquece aquilo que traiu. “É que Zeus, de voz tonitruante, reduz à metade / o mérito do homem sobre quem se abate o dia da servidão.”