Na “tese apresentada em 1940, para exame no 5º ano jurídico da Faculdade de Direito” da Universidade de Lisboa, Álvaro Cunhal afirma: “Só um número muito limitado de escritores, nomeadamente escritores católicos que – seguindo Santo Agostinho – declaram o aborto ‘o mais abominável crime’, se nega a admitir o aborto terapêutico”. Entre os que não aceitam o aborto terapêutico, o futuro líder comunista refere os “sujeitos do tipo do dr. Ary dos Santos, que fala com notável impudência de assuntos de que mostra notável ignorância” (Álvaro Cunhal, O aborto, causas e soluções, Ed. Campo das Letras, Porto 1997, pág. 103).

O insulto do aluno finalista ao referido advogado, mais próprio de um panfleto do que de um trabalho académico, é deselegante, senão mesmo ordinário (“sujeitos do tipo do dr. Ary dos Santos”!); e medíocre na redacção (na mesma frase repete o adjectivo ‘notável’, o que manifesta uma notável falta de vocabulário e de … imaginação!). Também é infeliz no seu teor porque, como a ciência prova que o feto é um ser humano desde a concepção, a sua vida é, necessariamente, inviolável; só quem nega este dado científico pode admitir o aborto, mesmo que seja o dito terapêutico. Lamentável?! Nem por isso porque, como disse quem me ofereceu este opúsculo, “um ataque do Cunhal é um elogio!”. E, por sinal, oferece um bom pretexto para uma saudosa evocação familiar.

O Dr. Alfredo Ary dos Santos (1903-1975) licenciou-se em Direito na Universidade de Lisboa, tendo-se especializado em transportes e acidentes de trabalho, nomeadamente como chefe do contencioso da CP. Por duas vezes representou Portugal em conferências internacionais, sendo louvado pelo então Ministro das Comunicações. Publicou mais de duas dezenas de estudos jurídicos, entre os quais a citada obra sobre O crime de aborto (Livraria Clássica, Lisboa 1935). Também foi autor de Nós, os advogados (Lisboa, 1934), D. Quixote Bolchevick (Lisboa, 1936), Eça de Queiroz e os Homens de Leis (Lisboa, 1945), Júlio Diniz e a vida forense (Lisboa, 1948), etc. Foi proposto, por Salazar, para deputado à Assembleia Nacional, convite que, por razões profissionais, declinou. Presidiu ao Supremo Conselho Cultural da Causa Monárquica, foi membro da Sociedade de Geografia de Lisboa e do Instituto Brasileiro de Cultura, um dos sócios mais antigos do ACP e vogal da sua Comissão Revisora de Contas. Condecorado com a Ordem de Santiago e com a medalha de dedicação da Cruz Vermelha Portuguesa; foi também Comendador da Ordem da Coroa de Itália e, por serviços humanitários prestados durante a guerra civil espanhola, Grande-Oficial da respectiva Ordem do Mérito Civil. Atendendo ao seu currículo, que bom seria, para o nosso país, que tivesse havido, citando o dr. Cunhal, mais “sujeitos do tipo do dr. Ary dos Santos”!

A propósito do livro O crime de aborto, o Embaixador Francisco Seixas da Costa publicou no seu blog, a 1-9-2018, um curioso depoimento, intitulado “Ary e o aborto”:

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, tive um colega, bastante mais velho, chamado Carlos Ary dos Santos. Foi chefe do Protocolo e embaixador em vários postos. Era uma figura clássica, um homem muito educado, de excelente trato, com quem sempre tive uma magnífica relação, pessoal e profissional. 

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Sendo primo do famoso poeta, letrista e declamador José Carlos Ary dos Santos, constava, como mais tarde vim a saber, que não lhe agradava excessivamente que as pessoas lhe lembrassem esse parentesco quiçá por razões políticas, quiçá por outras.

Um dia dos anos 80, fui em missão de trabalho ao Luxemburgo, onde Ary dos Santos era embaixador, tendo ele oferecido um jantar à delegação. Depois da refeição, à conversa, perguntei-lhe, casualmente: ‘O Senhor Embaixador é com certeza parente do …”.

“Ainda a frase não estava concluída e eu já via a cara do embaixador formar um esgar estranho, misto de desagrado e maçada. ‘Lá vem o meu primo à conversa’, devia estar ele a pensar. Eu desconhecia então que ele não gostava da associação ao primo, porém pressenti-o naquele preciso instante.

“Acontece que a minha pergunta não era sobre o seu primo e poeta José Carlos. E concluí a frase: ‘… parente do jurista Ary dos Santos, de quem tenho uma obra publicada sobre o aborto’.

“Imagino que, entre os circunstantes, alguém devesse ter-se interrogado por que luas eu me tinha interessado em adquirir uma obra jurídica do pai do embaixador, logo sobre um tema tão bizarro como o aborto. Mas nada esclareci, confesso, por embaraço. Vou fazê-lo agora.

“Fora uns bons anos antes, na década de 70, na feira do livro de Lisboa, na noite do último dia, antes do fecho definitivo. Eu procurava, nos stands de livros usados, algumas pechinchas, nessa altura vendidas ao desbarato, nas últimas horas da feira. Já ia carregado de sacos quando vi, no topo de uma das bancadas, longe para lhe poder chegar com a mão, um livro de Ary dos Santos, com o título ‘O crime de aborto’. Por baixo, trazia a menção ‘advogado’. Acaso seria o poeta advogado? Eu sabia lá! A edição parecia antiga, o preço eram, creio, 15 tostões. Obra ‘de juventude’? Nunca tinha ouvido falar. Era um título forte. Seria poesia? Seria um manifesto de polémica? Pelo sim pelo não, disse ao livreiro, apontando: ‘Ponha esse aí também!’. O volume veio assim na molhada que levava dessa bancada dos ‘quinze tostões’, num saco. Só chegado a casa é que vi o ‘barrete’ que enfiara. O livro era mesmo uma tese ultra-conservadora sobre o aborto, de Alfredo Ary dos Santos. De 1935…

“Voltemos à sala do Luxemburgo. O sorriso aliviado de Carlos Ary dos Santos, ao ouvir o termo da minha pergunta, acompanhou uma detalhada explicação de que se tratava, de facto, do seu pai, de cuja carreira e obra nos falou, com muito orgulho. 

“Carlos Ary dos Santos continuou a tratar-me lindamente, todas as vezes que nos voltámos a cruzar, no futuro. Se calhar, desde essa data, até um pouco melhor do que antes…”

Nos comentários a esta amável lembrança, não faltou quem corroborasse a opinião de Seixas da Costa sobre o Embaixador Ary dos Santos. Com efeito, um anónimo escreveu: “Trabalhei com ele, quando foi D-G [Director-Geral]. Era um tipo educadíssimo! E excelente pessoa. Além de um bom profissional.” Outro comentador, que também o conheceu bem, acrescentou: “Falo do […] Embaixador Carlos Ary dos Santos, que além de ser um óptimo profissional tinha um humor subtil e inteligente, sempre com a boa educação que o caracterizava”.

Nestes tempos, em que escasseiam as boas maneiras, o Embaixador Carlos Ary dos Santos já seria digno de louvor pelo facto de ter sido uma pessoa tão bem-educada. Mas, enquanto bom funcionário do Estado, poderia ter sido alguém sem valores, nem princípios, porque os há em todas as profissões. Tendo sido, em simultâneo, uma excelente pessoa e um óptimo diplomata, só pode ter sido o que, de facto, foi: um grande senhor.

Foi, sem dúvida, um gentleman, por mérito próprio, mas também graças ao seu pai, o Dr. Alfredo Ary dos Santos, e ao pai do seu pai, o Prof. Dr. Carlos Ary dos Santos, o primeiro que se chamou Ary, ilustre médico, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa e notável publicista em matérias da sua especialidade clínica e não só. Era, por esta linha, bisneto do proprietário, fundador e director do Colégio Nacional, a prestigiada escola onde estudou, entre outros, Almada Negreiros; trineto de um oficial do exército, condecorado com a mais alta distinção militar, a Torre-e-Espada; e tetraneto de um outro oficial, promovido por méritos em campanha no recontro de Barroca d’Alva, que foi convencionado em Évora Monte. Não em vão o Embaixador Ary dos Santos descendia, pela varonia, de cinco gerações sucessivas de ilustres servidores da nação.

Seria injusto não mencionar também algumas figuras femininas que tiveram especial importância na vida do Embaixador Carlos Macieira Ary dos Santos (1927-1993). Em primeiro lugar, como é óbvio, a sua mulher, agora sua viúva, a quem foi fiel até à morte, com quem criou uma família numerosa e sem a qual não teria tão bem servido e representado Portugal. Foi da sua mãe, filha única do anterior titular, que o Embaixador Ary dos Santos herdou os títulos a que deu novo lustre no país e no estrangeiro. Da sua avó paterna, recebeu a velha fidalguia por ela acrescentada à nobreza familiar, conquistada pelas armas e pelas letras. E, por último, reabilitou, mas não para si, os apelidos, então em vias de extinção, da sua bisavó pela varonia, que transmitiu à sua abundante geração: 8 filhos (entre os quais o autor destas linhas), 16 netos e, por ora, 19 bisnetos.

Se, como disse Francisco Seixas da Costa, o Embaixador Carlos Ary dos Santos tinha muito orgulho na carreira e obra do seu pai, de quem era único filho, não é menor o orgulho que os seus filhos têm no seu pai, avô e bisavô.

Muito mais haveria a dizer sobre o ramo primogénito da família que, por sê-lo, é o da sua representação e chefia. Mas é escusado, porque alguém, em comentário ao texto do Embaixador Seixas da Costa, afirmou já que são “pessoas de bem, portugueses que dignificam Portugal.” Está, pois, tudo dito.