Em 815, o Bispo Agobardo de Lião redigiu Contra Insulam Vulgi Opinionem de Grandine et Tonitruis, ou “Contra Noções Absurdas do Povo Comum sobre Granizo e Trovões”, um pequeno opúsculo a ridicularizar teorias de que havia homens que controlavam o clima e, por essa via, andavam a destruir as colheitas. Segundo o povo, existia um reino nas nuvens, chamado Magónia, habitado por marinheiros do céu, uma espécie de piratas responsáveis pelas tempestades que fustigavam a Europa medieval. Esses marinheiros alados trabalhavam em conluio com traidores terrenos, que os convocavam. Pelo menos, é no que acreditava o bom povo local, que ciclicamente dava caça a esses judas, castigando-os de forma medieval – não era difícil, uma vez que viviam na Idade Média.
Eis como Agobardo principia a sua denúncia: “Nesta região, quase todos os homens, nobres e comuns, da cidade ou do campo, velhos ou novos, acreditam que o granizo e o trovão podem ser produzidos pela vontade humana. Pois mal ouvem o trovão e veem o relâmpago, dizem “levantou-se um vendaval”. Quando se lhes pergunta como é levantado o vendaval, respondem (alguns envergonhadamente, com a consciência apertada, mas outros com confiança, como é costume dos ignorantes) que o vendaval foi levantado pelas encantações dos homens conhecidos como ‘fazedores de tempestades’”. Ora, isto é escrito por um homem que, todos os dias, servia fatias de pão que acreditava serem o corpo de um judeu falecido há 800 anos. Mesmo assim, até Agobardo, prócere da Igreja Católica pré-milenar, porventura a organização mais supersticiosa que existiu, era lúcido o suficiente para saber que a crendice no controlo do clima pela humanidade era pensamento mágico.
Nesta altura, o leitor que aguentou até aqui pergunta-se até onde quero chegar com esta pretensiosa e enfadonha referência a obra medieval obscura. A resposta é Baku. Desejo chegar à capital do Azerbaijão, onde decorre, até 6.ª feira, a 29.ª Conferência do Clima. Curiosamente, tal como as duas anteriores (Egipto e Emiratos Árabes Unidos) esta cimeira também se realiza em Magónia, país que desde a Revolução Industrial se deslocalizou da estratosfera para conselhos de administração de grandes petrolíferas.
Em Baku discutem-se as alterações climáticas ou, como dizem os políticos, a taluda. As alterações climáticas é a sorte grande para um governante. São tão urgentes que qualquer custo é justificado, desde que sirva para as combater. Que político é que não gosta de gastar dinheiro à vontade em brinquedos caros*? E são tão abrangentes que qualquer acidente pode ser-lhes assacado, das cheias em Valência até panarícios. O que isenta de responsabilidade o político que não acautelou e, por incompetência ou negligência, permitiu que o desastre tivesse um impacto maior. Que político não gosta de livrar-se de culpas? As alterações climáticas são um misto de cartão de crédito com cartão de saída da prisão do Monopólio.
Como uma organizadora de casamentos que reza por bom tempo, os organizadores destes saraus anseiam por intempérie que ajude a compor o cenário catastrófico necessário para endrominar o público. Desta feita, foram bafejados pelo desastre de Valência, uns dias antes. De facto, inaugurar um colóquio subordinado aos eventos climáticos excepcionais causados pela actividade humana dias depois da ocorrência de um evento climático excepcional causado pela actividade humana é uma coincidência feliz.
No entanto, para que isso seja verdade é imprescindível redefinir “excepcional” para que passe a significar “costumeiro”. É que, como Demétrio Alves explica neste artigo do Público, o episódio de Valência nada tem de singular. Trata-se de um fenómeno que infelizmente se repete com alguma regularidade: 6 vezes nos últimos 70 anos e, recorrendo à página da Wikipedia sobre “gota fria”, com registos desde pelo menos o séc. XIV. O que quer dizer que, provavelmente, antes de serem culpa nossa por andarmos de avião, as cheias em Valência já foram responsabilidade de marinheiros do ar vindos de Magónia. Ou então há outras causas para acontecimentos destes, o que seria bizarro, pois tiraria o Homem do centro do universo.
Confesso que da primeira vez que ouvi um jornalista falar em “gota fria” com a emoção de quem acaba de descobrir o ChatGpt, também achei que estávamos perante era uma modernice climatérica. Afinal, eram notícias velhas requentadas e o entusiasmo – e olhos esbugalhados – eram os mesmos do adolescente que percebe, pela primeira vez, o que quer dizer a expressão “contar azulejos”: uma fantástica novidade para ele, mas a cena mais batida para o resto do mundo.
O facto de fenómenos destes, historicamente registados, continuarem a ser noticiados como “excepcionais”, fazem-me ter esperança de ainda estar vivo para assistir a esta abertura de telejornal: “Boa noite! O Sol nasceu! Hoje, às 7h13 da manhã, deu-se um evento extraordinário que os especialistas resolveram baptizar de “alvorada”. Passavam poucos minutos das 7h quando, sem que nada o fizesse prever, o Sol despontou no horizonte. À medida que os minutos avançavam, ia-se revelando mais do astro. O último registo de um prodígio deste tipo remontava há cerca de um dia, mas alguns estudiosos julgavam tratar-se apenas de uma lenda. A surpresa foi dupla pois, por volta das 17h21, tão inesperadamente como surgira, o Sol voltou a desaparecer, mergulhando-nos numa inaudita e assustadora escuridão. O que é que terá ocasionado este fenómeno? O que teremos feito para merecer isto? Os cientistas ainda não têm respostas mas, sabendo que por volta das 7h02 alguém acendeu um forno, o nexo de causalidade é evidente”.
* Entretanto, já depois de escrever o texto, vi esta notícia sobre o mau funcionamento dos novos cacilheiros eléctricos. Muito resumidamente: em 2021 o então Ministro do Ambiente, Matos Fernandes, desejoso de mostrar as credenciais verdes de Portugal, instou a Transtejo a adquirir barcos eléctricos. A Transtejo encomendou os barcos, mas não as baterias, pois achou que ia arranjar mais barato. Não arranjou. Até ficou mais caro e o negócio foi vetado pelo Tribunal de Contas. Resolvida a chico-espertice, surgiu outro empecilho: a dificuldade em licenciar os cais de carregamento. Também demorou o seu tempo. Finalmente, agora já há cais licenciados. O problema é que funcionam mal e tem havido muitas viagens suprimidas. Obrigando as pessoas a irem para Lisboa de carro. Mas o que é que isso interessa se na COP que se realizou naquela altura o nosso país foi muito elogiado pelos seus barquinhos eléctricos?