Uma das (des)vantagens de não ser político e estar higienicamente afastado de qualquer tipo de atividade política é saber tudo pelos jornais. Foi através da imprensa que tomei conhecimento da existência de um documento chamado “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030”. Li que teria 120 páginas e, na forma como foram apresentadas, medidas que pareciam ser keynesianas. Desconhecendo os justificativos apresentados, não podia tecer comentários sobre as medidas propostas que, podendo ser pagas, surgiam como sendo aceitáveis. Elaborei um primeiro texto de comentário possível, em que manifestava o meu desgosto pela ausência de medidas para a saúde. Não sei se já lá estavam, ou se foram ignoradas pela comunicação social. Uma vez que entretanto surgiu o documento para “discussão pública”, decidi escrever um texto diferente, agora com conhecimento de causa.
O comentário mais interessante que li, ainda que sobre a forma provisória da “Visão”, foi o que escreveu o Prof. Rui Tavares. Acho que a nota freudiana sobre a nossa menor capacidade de retenção anal foi um pouco descabida, mas reconheço que os Portugueses são muito mais dados à precocidade oral. Mamamos muito e obramos pouco. Muito relevante a comparação entre as 35 páginas de um plano alemão para todos lerem (veio com versão em inglês) e o “cozido à portuguesa” com 120 páginas que, estou certo, merecerá trabalho de gabinete e alguma afinação culinária ao nível da planificação, calendarização e análise de custos e benefícios.
Não posso saber, ninguém sabe, se a escolha das prioridades foi a mais acertada face a outras hipóteses que tenham sido descartadas. O documento apresenta uma súmula do que pode ser feito. Contudo, é escasso na discussão da racionalidade das escolhas e completamente omisso em calendários, prazos, custos. No fundo, sem desprimor para com o esforço de quem o elaborou, é um trabalho de exposição, no sentido da exibição, de ideias possíveis.
Vi, com agrado, que tem algumas referências à saúde. O agrado passou depressa. Restou a insatisfação de ver que não tem quase nada de novo. Em boa verdade, a parte da saúde está geralmente mal escrita e até tem alguns erros conceptuais.
Vejamos. No documento lê-se que “o setor da saúde é um importante polo de desenvolvimento do país, tem uma importância central na economia nacional, emprega cerca de 300 000 profissionais, gera cerca de 30 mil milhões de euros de volume anual de negócios e participa também nas exportações”. Não há uma nota que seja à saúde enquanto valor autónomo, uma total ausência de simpatia para com a noção de bem-estar como motor social e económico. Saúde é importante porque gera dinheiro e ponto final. É curto, muito curto.
Mais à frente, está escrito que “o aumento da esperança de vida, a diminuição da natalidade e o envelhecimento estão a anular os padrões de mobilidade e mortalidade da população e a gerar um número maior de doenças crónicas”. Tem uma gralha, quem sou eu para criticar, e onde está mobilidade deveria estar morbilidade. Nada de grave. O que é grave é não perceber que a geração de maior número de doenças crónicas não depende do envelhecimento da população. Quanto muito seria “maior número de doentes crónicos” e nem isso depende do envelhecimento per si. Depende, sim, de um envelhecimento que não é saudável. Portugal tem uma duração de sobrevivência saudável acima dos 65 anos bem abaixo da média europeia. Note-se que, nas medidas, o texto arrepia caminho, referindo-se a um Programa Nacional de Investimento na Prevenção da Doença que não explica, nem prioriza. Para todas as doenças? Para que agentes patogénicos? Quanto custará? Que rendimento poderá ser obtido com o investimento a ser feito?
Logo aqui, no que se refere à prevenção, outro engano conceptual: “O foco das políticas de saúde deve aliar o tratamento da doença com a sua prevenção”. O autor não sabia, mas podia ter perguntado, que tratamento é prevenção, é prevenção terciária. E depois, na consequência de elencar patologias preveníveis por uma sequência que não é clara, em que a prevalência não terá sido o factor determinante no ordenamento, acaba por apenas propor um “código nutricional”. Não parece grande investimento.
No capítulo dos investimentos estruturais, muitíssimo necessários, nada de novo. Nem sequer é nova a omissão constante do novo edifício para o IPO de Lisboa, o mesmo que será emparedado na conclusão das obras absurdas que decorrem na Praça de Espanha da capital, que culminarão com a construção de um edifício de escritórios onde era a antiga feira de “ambulantes”. Este sim, sem desprimor para outras necessidades em termos de recuperação de edificado e construção de novos hospitais – onde se deve incluir Vila Nova de Gaia, Sintra e o “Oeste” a Norte de Lisboa – seria um momento alto, com mais de 30 anos de atraso, no combate ao cancro.
Infelizmente, em termos oncológicos, o que propõem é a conversão da central de Sacavém num polo para tratamento com protões. Não digo que não se justifique a existência de equipamentos para terapêutica com protões, mas é nada de muito novo. O que não se percebe é porque é esta a prioridade e não outra, num país onde as listas de espera para tratamento “convencional” de cancro continuam a crescer. Já agora, para satisfação do autor da Visão Estratégica, no caso do cancro há uma relação entre o aumento da incidência e o envelhecimento populacional. O número de cancros vai aumentar, sempre a subir, e a aposta na prevenção primária possível – com enfoque no combate ao tabagismo -, na prevenção secundária, quando indicada, e no tratamento célere e eficaz, devem ser prioritários. Não chegam os protões.
Quanto à produção industrial, porventura desconhecendo que na área farmacêutica, a de maior valor acrescentado, há uma grande dependência de investimentos internacionais, o grande futuro até 2030, na visão do autor, estará no mercado, absolutamente conjuntural, de ventiladores mecânicos e equipamentos de protecção individual. Esperava-se mais. Bastaria ter consultado o Health Cluster, porque eles têm tido uma boa produção de ideias e, diga-se, de produtos.
É lamentável que a “Visão” omita a imperiosidade de investimentos nas áreas de tecnologias de informação com especificidades próprias e únicas para a saúde, em especial pela criação de um processo clínico electrónico único nacional e pela imposição de interoperabilidade total entre os repositórios de informação clínica de todas as instituições prestadoras de cuidados de saúde em Portugal. Seria o maior serviço que se poderia imediatamente prestar aos utentes e prestadores.
Em termos de avaliação de impactos na saúde também já sabemos que o Governo não os mede, não os usa, desdenha-os. Teria sido interessante ver alguma reflexão estruturante sobre o valor acrescentado para o bem-estar e saúde, desculpem-me o pleonasmo, dos investimentos em obras públicas.
Concluo, com a impressão de que a parte da saúde não deverá ter sido escrita pelo suposto autor. A “Visão” é um texto a várias mãos, a habitual manta de retalhos, o “cozido à portuguesa”, que elenca propostas, sem que se perceba uma continuidade nos objectivos e onde a saúde é descurada e só lá foi colocada porque alguém achou que fazia falta. A saúde faz falta, mas não será com propostas com este nível de impreparação, superficialidade e ligeireza que ela poderá melhorar em Portugal nos próximos anos.
Nota final: Quando escrevi “higienicamente”, a propósito do meu afastamento da política, em parte auto-imposto, não pretendi que se inferisse alguma ideia de que a política seja necessariamente suja. Higiene, neste caso, é o termo que descreve a minha atitude profiláctica de alheamento da política partidária. A recente decisão de minorar o papel da Assembleia da República, ao terem permitido que o Primeiro-Ministro só lá vá de 60 em 60 dias, veio confirmar a minha impressão de que os dois maiores partidos nacionais precisam de uma reforma de mentalidades. Ir ao Parlamento pode ser uma maçada, há que reconhecê-lo, gera incómodos e dá muito trabalho, mas é uma oportunidade única para reflectir no que se faz e poder aprender com os deputados.