Começo este texto pelo ponto mais óbvio: todas as mulheres portuguesas deviam agradecer aos juízes do Tribunal da Relação do Porto, Maria Dolores da Silva e Sousa e Manuel Soares, o nosso país um local consideravelmente mais perigoso. Pelo menos as que se atrevem a essa atividade que é sair de casa sem estarem acompanhadas de um elemento familiar do sexo masculino.
Uma mulher foi violada, enquanto inconsciente, numa casa de banho de uma discoteca de Gaia por dois homens. Tanto como resposta a este crime concreto, como por uma questão de prevenção de futuras violações (mesmo aquelas que cabem no conceito legal eufemístico de ‘abuso sexual’), a pena aplicada aos violadores deveria ser exemplar. Como qualquer pessoa com neurónios funcionais percebe, sanções levíssimas como um ralhete tíbio do tribunal levam a que potenciais violadores se sintam impelidos a violar. Afinal, se o pior que lhes pode acontecer é uma pena suspensa, não correm grandes riscos, vamos lá forçar sexo.
Mas o tribunal de primeira instância não entendeu assim, sentenciando pena suspensa. E o Tribunal da Relação do Porto veio reafirma-lo, ademais usando as magníficas tiradas a que já nos acostumou. A sonsice e a hipocrisia são tais que os dois juízes da Relação, enquanto agiam deliberadamente para colocar em perigo as mulheres portuguesas e incentivar futuros violadores – ao recusar dar uma pena pesada que tornasse o custo de violar uma mulher algo que os agressores não quisessem arriscar –, referem a necessidade de ‘prevenção geral’ deste tipo de crimes. Estranhamente não lhes ocorreu que a prevenção mais eficaz passa por punir devidamente os crimes sexuais que ocorrem.
Vejamos parte do acórdão.
‘Os factos demonstram que os arguidos estão perfeitamente integrados, profissional, familiar e socialmente e dão-nos conta de, pelo menos, grande constrangimento dos arguidos perante a situação que criaram.
Os arguidos não têm qualquer percurso criminal.
A leitura dos factos espelha personalidades com escassíssimo pendor para a reincidência.
A culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos.
A ilicitude não é elevada. Não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]. […]
As finalidades da punição poderão ser alcançadas com a simples ameaça de prisão e a censura do facto.’
Resumindo:
- Os criminosos têm uma vida constituída, nunca tinham cometido crimes, pobrezinhos até se arrependeram. Não se vai estragar a vida de dois homens só por serem uns violadores, pois não? Portanto, rapaziada, desde que estudem, tenham emprego e seja a primeira vez que prevaricam, violem à vontade que nada de grave vos acontece.
- Não há grande culpa dos dois violadores. A culpa já nem interessava, dizem os dois juízes, mas mesmo assim ambos quiseram manifestar que é mediana e não há ilicitude elevada em dois homens violarem uma mulher inconsciente. Da parte que me toca, muito obrigada, Maria Dolores Silva e Sousa e Manuel Soares.
- E a vítima? Interessa para alguma coisa a estes dois juízes? Absolutamente nada. Para além de se mostrarem favoráveis à atribuição de uma indemnização à vítima (certamente não muito grande, afinal os atos não foram graves por aí além), nem uma palavra para as consequências que uma violação dupla terá tido naquela mulher.
Nem uma palavra? Minto. Os dois juízes consideram que os danos físicos foram diminutos ou inexistentes. Ficamos com a sensação que os juízes supõem que, para violadores, os dois homens até são simpáticos e cavalheiros.
Bom, aqui chegados importa chamar ignorantes a estes dois juízes (e uso de muita contenção). As violações são a causa mais frequente de stress pós-traumático nas mulheres. É uma doença debilitante, que não raro leva ao suicídio. A violação terá tido com certeza consequências graves na saúde e na vida da vítima, mas tal ficou ausente do acórdão. Se os dois juízes não sabem que os efeitos de um crime destes na vítima não se ficam pelos danos físicos, deviam aposentar-se de imediato e de seguida frequentar um curso onde aprendessem que os seres humanos não são rácios financeiros.
E permitam-me que cite Freud em Para Além do Princípio do Prazer: ‘o facto de alguma ferida ou lesão físicas ser sofrida ao mesmo tempo [do evento traumático], tal geralmente inibia o desenvolvimento da neurose [traumática]’. E também Lacan em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, que chama poeticamente ao trauma ‘um encontro perdido [com o real]’. Em suma, não ter existido dano físico (não foi preciso) ou a vítima estar inconsciente não só não diminuem as consequências da violação na vítima como podem até agir para as aprofundar.
Se os dois juízes se tivessem dado ao trabalho de se informar sobre aquilo que estavam a julgar, em vez de apenas saberem de Direito, talvez tivessem produzido um acórdão decente. Porém, como se viu, neste caso a (in)justiça foi produzida tendo em conta os interesses dos criminosos mas não os da vítima. As perspetivas de futuro dos criminosos foram importantes para os juízes; o sofrimento da vítima para o resto da vida foi irrelevante.
Já disse e repeti que estas sentenças absurdas com que temos sido confrontados são um problema político. Cabe aos políticos garantirem às mulheres portuguesas uma das primordiais funções de qualquer estado: a segurança dos cidadãos. Cabe também ao poder político agir para que os tribunais não atuem de forma a promover a insegurança das mulheres e a retirar-nos o direito e a liberdade de movimentação no espaço público (ou de acesso público). Uma sentença como esta atenta contra os direitos de todas.
Sugiro que comecem por aumentar as penas mínimas dos crimes sexuais que tenham incluído penetração ou todos os que envolvam crianças. Já percebemos que não podemos deixar ao bom senso e sentido de justiça dos tribunais aplicar a estes crimes a não-punição de penas suspensas.