1 “Ah este ano há porquinhos no presépio? Que esquisito…” perguntava alguém da casa. Sustive a estupefação do meu interlocutor: “As ovelhas levaram sumiço, talvez tenham ganho vida própria, os porquinhos de marfim ficam muito bem, os pastores não se importam”. O interlocutor substituiu a discordância por um (irredutível) mutismo mas a sua estranheza era dispensável: todos os anos a feitura dos presépios conhece — ou melhor, pressupõe — contingências que por vezes os tornam, como dizer? um pouco “diferentes”. Já houve cinco Reis Magos, já houve outros animais que não as ovelhas, já houve figuras que nada aparentava umas às outras a não ser a “vontade” delas em também participar da Natividade. Nessa “imagem artesanal da paz” como há dias chamou o Papa Francisco ao presépio, numa das suas audiências . Na nossa família já houve presépios estilizados e barrocos por entre outros de barro, pano, papel, plástico, madeira, cerâmica. Houve e haverá. Os doirados dos fios e das bolas, a beleza da mais enfeitada árvore de Natal, o brilho das luzes citadinas transportam consigo o efémero e o artifício mas ficarão sempre aquém do anúncio da estrela de Belém. Não nos fazem parar, absortos e maravilhados, face ao mistério e ao poder do mistério; não nos curam o olhar nem as fadigas, não nos animam, nem interpelam. O brilho enfeita o Natal, o presépio compromete a alma. Do primeiro não vem mensagem, nem chegam mensageiros, do segundo vem o “sinal admirável” , conforme em também admirável Carta Apostólica escrita para este Natal, Francisco alertou o mundo, acordando-nos sobre o significado do Presépio e contando-nos a sua história. Ou melhor, devolvendo-nos a responsabilidade e o desafio da revolução que o Presépio é.

(E que faríamos nós sem este Papa? )

2 Alguns dos presépios que vou juntando vêm de longínquas paragens – Perú, India, Brasil –, outros, de mercados e feiras do país, mas depois há os que se nos colam à sensibilidade pelo lugar de onde vêm e pela originalidade da concepção, a escolha dos materiais, os detalhes. São fabricados “in loco”, pelas mãos dos artistas, pintores, escultores, designers, “utentes” do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Ternos, criativos “utentes”. Olha-se para um barro esculpido, um desenho, uma pintura, um bordado, e é como tocar a aflicção da “diferença”, alcançar o (inalcançável?) desejo da inclusão, intuir o imenso sonho da “normalidade”. De sair dali, para não se ser dali. Desta estigmatizante pertença.

Mas ás vezes penso que se por uma vez – uma só vez, que fosse – uma qualquer televisão entrasse por ali dentro, com uma câmara atenta, e “apanhasse” a imedível dimensão clínica e humana de uma instituição tão pouco amada como aquela, alguma coisa abanaria. E talvez mudasse. Lá dentro mas sobretudo cá fora, onde não “se” sabe de nada. E não falo agora de “ reportagens de Natal”, falo do que ali se passa, falo da vida deles, falo da “diferença”, esta diferença. Falo do medo que há, palpável, físico, meio envergonhado, meio constrangido de lá entrar e afinal…

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E porque os últimos serão os primeiros, evoco agora de quem merece ser evocado. Lembrando –porque a testemunho — a atenta competência e a atentíssima generosidade de quem, a todos os níveis — com tão, tão poucos meios — tudo dá, mantendo os “utentes” agarrados à vida possível.

Natal derisório tal o manto de fininha tristeza que tudo cobre, sob a fragilidade da nossa “alegria”.

3 Passar a porta da Igreja dos Jesuítas em Viena aos domingos de manhã é passar a porta do paraíso. Não conheço muitas portas para lá, mas sei que esta é uma delas. Vou cedo, costuma fazer muito frio mas na rua onde ainda não se vê vivalma, já ouço os acordes da música tentando adivinhar que missa tocarão naquele domingo. Depois, mal empurro o pesado batente o coração quase me salta do peito na antecipação jubilosa do que me espera. Lá dentro, a orquestra, os solistas e o coro, ensaiam a missa solene “Waisenhausmesse” de Mozart. De vez em quando o maestro faz uma breve pausa, dá indicações, volta atrás, recomeça-se. É sempre assim em Dezembro, comigo sentada no mesmo lugar da gelada igreja e apenas mais meia dúzia de pessoas para quem como eu a missa dominical começa no ensaio e recordo que por mais de uma vez aqui deixei nota do que tomo por um absoluto privilégio. Não é só o tratar-se de uma celebração especial da eucaristia, não é só a música — Mozart, Haydn, Schubert, austríacos que a Áustria abençoa ou Beethoven que lá viveu quase uma vida, mas também tantos outros — nem os intérpretes ou os coros. É o recolhimento, o silêncio, a sobriedade, a ordem. É os católicos vienenses levaram aquilo muito a sério, honrando-se da “sua” igreja e activando-se nos usos e costumes que a constituem e nos rituais que a servem. Como por exemplo, colaborando para ser possível ter todos os domingos do ano (menos em Agosto), uma orquestra, um maestro, solistas e um coro. Cantando missas de grandes compositores que conforme o entendimento dos sacerdotes responsáveis, amparam celestialmente o desenrolar da liturgia na celebração dominical.

4 O ar do tempo não valoriza por aí além o poder do ritual como elemento estruturador — e também “amparador” — de sociedades e comunidades. Nem sequer lhes dá a importância de conduzirem ou mesmo disciplinarem alguns dos nossos passos. Ignoro se será o meu lado ferozmente institucionalista ou — nos antípodas dele — a costela indisciplinada mas a verdade é que aprecio rituais como sucede por exemplo com o Natal e os lugares onde ele me leva ou onde pousa a minha família. Prefiro o do “Oeste”, minha segunda morada, onde se vive a quadra com quem está e com quem vem. Natal por isso imediatamente mais próximo — das pessoas, da natureza, do presépio, de algum silêncio. Onde tudo ou quase tudo é calcorreado a pé, se tratam as pessoas pelo nome próprio, as “boas festas” nunca são postiças e se apanham as bagas, o azevinho e o musgo, no jardim. Lareiras acesas, aconchego na húmida paisagem verde, a barragem cor de chocolate por causa dos temporais, o escuro inconfundível da noite no campo, a missa do galo diante da muralha iluminada do castelo de Óbidos. Num Santuário de branca e invulgar arquitectura oitavada, onde há um recolhimento “natural”, ninguém está de passagem, todos são “daqui”. Pequena comunidade de coração simples no ar frio da noite.

5 Também houve — como sempre há — o Natal do Convento dos Cardais. Faço questão nesta fidelidade, sou uma espécie de devota.

Sabe-se a estonteante beleza da sua igreja, o valor do espólio do Convento, o apuro com que é mantido e guardado um património raro no país Mas o que sobretudo se conhece é o rasgo e o fôlego da personalidade da irmã Ana Maria. Alma do Convento, mas acima de tudo mãe cuidadora do vasto friso de mulheres com alto grau de deficiência, postas à sua guarda, dentro daquelas mesmas paredes. Pelas quais zela e vela, amorosamente, incansável guardiã. Está perto dos oitenta anos permanentemente desmentidos pelo olhar perscrutante, o passo veloz, a firmeza de caracter, a atenção sempre alerta, o poder de decisão. E … é ideia minha ou ela também nos olha com um fiozinho de ironia doce no seu semblante risonho? Um hino ao melhor da condição feminina.

Muitas vezes dou comigo a decidir que são mulheres como esta, capazes da maior das dádivas que é a dádiva, inteira, integral delas mesmas, que o mundo ainda está de pé.

E neste caso, mulheres como Ana Maria, capazes de corresponder à simultaneidade de dons tão exigentes, complexos, extenuantes, como o cuidar do valiosíssimo património nacional deixado à sua responsabilidade; providenciar com sageza e competência o melhor para as suas “meninas”; acolher com igual grau de conhecimento cultural os diversos promotores das actividades que vão ocorrendo nos Convento dos Cardais — concertos, recitais, conferências.

E no Natal, os almoços, os lanches, a famosa “mercearia”.

Seja o que for porém que aqui deixe da Irmã Ana Maria, ficarei sempre aquém. As palavras e eu própria.

6Admito que possa ser desconcertante ir buscar dois artistas, mesmo sendo os génios que são — um canta, o outro, toca — para que também tomem parte nesta tão subjectivo evocação natalícia. Mas não estava Deus a falar com Camané e com Mário Laginha naquela noite no Coliseu? A ira do temporal era só do lado de fora, lá dentro, a perfeição era quase divina e quase se tocava. Vira já este espectáculo há largos meses no Porto, mas de então para cá o caminho andado foi ampliando a confiança entre um e outro. Cimentando a sua tão fértil cumplicidade, agigantando-lhes — se possível – o talento que em cima daquele palco os levou em direcção ao sublime.

E o palco era o círculo  “360 graus”, usado para os circos no Coliseu. Mas desta vez revisto com golpe de asa pelos companheiros de sempre, Paulo Mendes, iluminador e Alfredo Almeida, técnico de som e produtor, proporcionando uma fortíssima, inesperada intimidade entre a voz, o piano e a maravilhada plateia.

Melhor presente de Natal do que este, acho difícil. E imbativelmente português, ainda para mais.

Meu. Nosso