Continuemos em França. É onde parece estar em cena o futuro da Europa. O presidente Macron atirou o país para eleições com um princípio: “nem, nem”. Nem a União Nacional de Marine Le Pen, nem a Frente Popular sujeita à França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon. Macron pretendia assim encarnar um “centro” assediado por dois “extremos”, um à direita e outro à esquerda. Entretanto, a primeira volta pôs os candidatos de Le Pen à frente em quase todas as circunscrições. Uma maioria nacionalista parece possível. E eis o partido do presidente a despir o fato do “nem, nem” para se enrolar na bandeira da “frente republicana”, o velho costume de todos os partidos trocarem votos entre si para impedirem a eleição de nacionalistas. De repente, Mélenchon, um dos extremos com que Macron aterrorizava a França, tornou-se uma opção de “voto útil” para o “centrismo”.
Que tem Mélenchon de preferível? Mélenchon fundou um movimento unindo a extrema-esquerda mais violentamente anti-liberal com um fundamentalismo islâmico que, por enquanto, opta por avançar atrás do esquerdismo. É o que os franceses chamam “islamo-gauchisme”. Devemos suspeitar de Le Pen porque pediu dinheiro emprestado a bancos russos quando a banca francesa, por razões políticas, boicotava o seu partido? Mas a Mélenchon, Putin não suscita senão complacência, quando não simpatia. O partido de Le Pen teve, entre os fundadores em 1972, colaboradores da Alemanha nazi? Mas Le Pen, que expulsou o seu pai e mudou a filosofia do partido, esteve na “Marcha pela República e contra o Anti-semitismo” em Paris, em Novembro de 2023. Mélenchon, engasgado de ódio contra Israel e preso aos islamistas, recusou-se a ir. De que modo defende Mélenchon os “valores republicanos”, ao ponto de um “centrista” poder votar nele tranquilamente?
Tudo isto faz lembrar o “duplo critério” que, em Portugal, faz PS e PSD excluírem o Chega, ao mesmo tempo que admitem na área do poder ou acham “institucionais” o PCP e o BE, as únicas forças políticas que ameaçaram a democracia desde 1974; ou que, em Espanha, permite ao PSOE fingir ter muito medo do que o Vox pode fazer à democracia, enquanto pactua com os golpistas da Catalunha e os terroristas bascos. Donde vem esta duplicidade? Está Macron mesmo convencido de que Le Pen, no governo, irá abolir eleições? Em Outubro de 2022, quando Giorgia Meloni se tornou primeira-ministra de Itália, o fascismo ia regressar. Dois anos depois, onde está a polícia política e a invasão da Etiópia? Agora, o centrismo europeu namora Meloni. Dizem: Meloni está num grupo diferente do de Le Pen no Parlamento Europeu. Mas em 2022, eram as duas “fascistas”.
Não há aqui mistério. O que, aos olhos dos centristas como Macron, separa Meloni de Le Pen é que Meloni já é governo, e Le Pen não: portanto, têm de aceitar Meloni, mas ainda não Le Pen. O que, por sua vez, os faz distinguir entre Le Pen e Mélenchon é que Le Pen pode ser governo, e Mélenchon não: portanto, podem votar em Mélenchon, que não lhes vai tirar lugares, mas não em Le Pen. Em Portugal, a história é igual: o que, para os centristas de cá, diferencia o Chega do PCP e do BE, é que o PCP e o BE estão em declínio, não ameaçam o predomínio do PS ou do PSD, mas o Chega cresce.
Vamos entender-nos: não são os chamados “extremos” em si que inquietam os centristas como Macron, mas a possibilidade de serem desalojados do poder: por isso, só discriminam, entre os “extremos”, o que pode ganhar eleições. A perversão está no modo como, sem escrúpulos, nos tentam convencer de que a democracia depende de eles manterem lugares e mordomias. Para azar deles, cada vez mais eleitores europeus começam a distinguir entre a democracia e esses lugares e mordomias.