Não é “só” a violência: é a guerra! E na guerra a violência torna-se exorbitante e “legítima”. E parece transfigurar, quase com naturalidade, pessoas boas em demónios. Como “natural” parece ser a forma como se incrementa o ódio, como se mata a eito, como se destrói, como se viola e violenta, ou como os estranhos são humilhados, saqueados e destruídos, unicamente porque há quem quem os elege como seus inimigos. Não é “só” a violência: é a guerra! Feita por pessoas como somos. Seremos nós capazes dessa maldade, também? Até há quase dois meses diríamos todos – claro – que não.
Na verdade, antes da guerra estar tão perto de nós fomos supondo que a barbárie pertencia a um passado longínquo, de pessoas com crescimentos depauperados por condições de vida terríveis. Desamparadas, sós e abandonadas. Expostas a traumatismos continuados. Sem famílias “estáveis” e sem escolaridade. Mas, hoje, confrontamo-nos com questões quase inimagináveis há algum tempo atrás: como podem pessoas com infâncias “normais”, com família e, muitas delas, com filhos, e com muitos anos de escola, quando são chamadas para uma guerra, se transfigurarem a ponto de “deixarem” de ser pessoas? A guerra no século XXI fica mais absurda, ainda. E torna mais difícil de, partindo dela, nos levarmos a entender. Como podem pessoas com as melhores famílias e as melhores infâncias que a Humanidade já “produziu”, e pessoas (desde sempre) mais instruídas e mais informadas, terem atitudes tão loucas e tão bárbaras como os nossos antepassados mais remotos? De que servem os laços familiares e a formação escolar se, quando se constrói uma guerra e se escolhe levá-la por diante, parece haver uma maldade intrínseca que nos toca a todos e que nada do que damos aos nossos filhos parece conseguir parar?
Eu acho que, na maior parte das vezes, evitamos perguntar quem somos. E isso é estranho, não é?… Se somos tão inacreditavelmente capazes para o conhecimento porque é que fazemos quase questão de ser tão desconhecidos de nós próprios? Se, ao mesmo tempo, somos capazes da violência mais bárbara e do belo mais sublime, quem somos nós que, duma forma cega e odiosa, destruímos, arrasamos, e massacramos sem compaixão nem piedade, sem culpa e sem remorsos, enquanto, ao mesmo tempo, somos capazes do amor, da inteligência, da criação e da beleza? E, já agora, porque é que somos como somos? E o que é que faz com que, nesta montanha russa de coisas tão antinómicas, evitemos perguntar o que é isso de sermos pessoas? Seremos nós capazes de ser tão maus como os piores? É claro que a resposta mais impulsiva irá no sentido de dizermos que não. Mas o que é isto da violência humana, mais atroz e mais repugnante? Como podemos aceitar, sem nos perguntarmos quem somos, que todos os animais sejam agressivos e só os seres humanos sejam violentos?
Não se trata “só” de matar. Trata-se de se ser bárbaro. De torturar. De humilhar. Ou de violentar. Como podem estas pessoas dormir em paz e abrir os braços para os seus filhos, num regresso a casa, sem esquecer que outras crianças, iguais a eles, foram mortas por si? Como se podem sentir merecedores do amor e insistir no ódio? Como se pode matar sem que se morra, de cada vez que se mata? Como se pode matar sem que o amor de mãe, matriz do amor, e a mãe, em tudo o que ela representa na construção do amor, não sejam mortos quando se mata? Será essa a equação que temos hoje.
A guerra parece ser a loucura que se legitima. A inteligência que se obnubila. E os laços que se aniquilam. Não chega falarmos dum instinto de morte. Somos, todavia, animais. E todo o instinto é uma resposta “natural, como a sede” – e, na verdade, impulsiva (não premeditada nem calculada) – ao serviço da vida. O que leva, então, a que animais que, para mais, pensam, sejam capazes duma violência pensada e grotesca, que se banaliza, e que nos põe a um nível que fica aquém do dos outros animais?
Freud, a certa altura, falou duma pulsão de morte. Como se, inconscientemente, tivéssemos em nós forças de sentido contrário que parecem lutar umas com as outras em nome dum equilíbrio que, por força delas, seria sempre incerto. Não faz sentido questionar a consistência desse conceito, neste momento. Mas uma guerra é muito mais que um exercício “automático” ao serviço de uma qualquer homeostase. A guerra é a loucura dos povos. É a forma de uma multidão de pessoas ser arrastada através dum discurso empolgado pelo ódio – populista, claro – que elege um responsável pelos males dum povo e o combate em nome duma libertação prometida. Destruindo em nome da justiça. Maltratando em nome da bondade. Matando em nome da vida. Mentindo em nome da verdade. A guerra é a loucura de milhares e milhares de pessoas como nós. Manipuladas de livre vontade. Que agem mas que não pensam. Que reclamam os valores da Humanidade enquanto os arruinam, sem culpa nem remorsos. Que usam a vingança para reclamar a paz.
A impressão que dá é que a religiosidade foi, por muitos anos, o antídoto da guerra. Até ao momento em que a religião patrocinou a guerra. Parecemos todos, num mundo tão evoluído e tão amigo do conhecimento, estar mais ou menos perdidos (ou estupefactos e em choque) diante da guerra! Como se ela fosse um erro de casting do nosso tempo. Depois de tudo o que estamos a viver, é altura de nos perguntarmos se os nossos filhos estarão preparados para a loucura que estamos a viver. E a resposta será: não! Receio, mais, que imaginem a guerra longínqua e, diante dela, que se sintam quase invulneráveis. Como se está guerra não fosse sua. E esse será o maior dos riscos da guerra. Levar a que muitas pessoas boas perguntem, de forma enfática: “Mas não há ninguém que mate aquele homem?…”, dando a entender que a guerra se resolveria mais facilmente se quem a declarou, “misericordiosamente”, desaparecesse. Mas não há um promotor da guerra. Há a guerra. E muitos cúmplices do mal. Que, por mais que ela deixe destroços, ruínas e escombros – e morte, e morte e morte – nos leva a evitar reconhecer que ela é promovida por pessoas como nós. Os nossos filhos precisam de reacções veementes (não tímidas e comprometidas) das pessoas de bem contra o mal. Reacções ensurdecedoras e insubmissas. Reacções incansáveis e corajosas. E não tanto desabafos com que se reclama que outros combatam por nós o mal. Como se a nossa sublevação ao de leve contra o mal nos protegesse das suas represálias e não nos comprometesse com os remorsos e a vergonha de ficarmos aquém de toda a coragem, que em nome do bem, devíamos ter.
Não é “só” a violência: é a guerra! Se, ao mesmo tempo, somos capazes da violência mais bárbara e do belo mais sublime, trata-se de perguntamos o que nos falta para encontrarmos na beleza do que nos junta os argumentos para venceremos o mal que nos separa. É este o desafio que, hoje, nos liga: descobrir como se vence a guerra sem comprometer a paz.