Nunca, nos quatro anos de ‘geringonça’, se assistiu a um condicionamento da opinião como aquele que a esquerda ensaiou durante a pandemia do coronavírus. Além das evidentes e infantis polarizações – quem criticou as comemorações do 25 de Abril passou a fascista, quem criticou o 1 de Maio queria enclausurar Jerónimo de Sousa por ser septuagenário –, há uma tentativa premeditada de condicionar o debate público. Jornalistas, que deviam escrutinar o governo, são os seus primeiros guarda-costas nas redes sociais. A oposição, cujo dever é fiscalizar o governo, hesita entre fazê-lo e considerá-lo anti-patriótico. O Presidente da República, cuja missão é assegurar o regular funcionamento das instituições, deixa que o primeiro-ministro utilize a Presidência para encobrir o ciclo noticioso em que as suas mentiras sobre o Novo Banco foram expostas pelo ministro das Finanças. Não é uma distopia; é a realidade desta semana. O regime andou a brincar à vichyssoise em plena pandemia.
Mas olhemos para outros exemplos.
Neste tempo, a esquerda vem exigindo repetidamente à direita que se demarque do Chega. É uma exigência tonta, na medida em os líderes partidários de ambos os partidos da direita democrática já se demarcaram dezenas de vezes de André Ventura. Apesar disso, a cada proposta ou política apresentada pelo deputado do Chega lá aparecem os mulás, exigindo ao PSD e ao CDS que rejeitem ideias que nunca defenderam ou defenderiam. Com isto, o objetivo e a estratégia da esquerda são claros: polarizar o debate entre Ventura e o governo, cobrindo o PS de superioridade moral e colando toda a direita ao populismo de Ventura. É uma tática eficiente, mas irresponsável. Em primeiro lugar, porque inviabiliza o debate em moderação, pois visa confundir moderados com populistas. Em segundo lugar, porque oferece a um partido que elegeu apenas um deputado a dimensão mediática de um governo apoiado por 107 deputados. Em terceiro lugar, porque promove um maniqueísmo em que todos os que criticam Costa são defensores de um partido xenófobo e racista – o que é excelente para Costa, porque anula a validade cívica dos seus oponentes, mas verdadeiramente falso, porque nem todos são André Ventura.
Pergunto-me de onde virá esta indolência dissimulada da nossa esquerda. Terão medo de debater com alguém que não partilhe os ideais do Chega? Por ser mais difícil? Por obrigar a uma conversa mais elevada? Sentir-se-ão incapazes? Não entendem que se transformaram, ironicamente, nos maiores divulgadores de Ventura? Não me recordo, por exemplo, de ouvir um comentador pedir a António Costa que repudiasse as posições anti-democráticas do PCP durante a ‘geringonça’. A bússola moral dos vigilantes do regime perpetua esse compasso de conveniência.
Vamos a mais casos concretos, na imprensa.
Rui Rio comparou recentemente a comunicação social a indústrias fabris e uma editora de jornal declarou-o prontamente inapto para as funções de primeiro-ministro. Já manifestei várias vezes, aqui no Observador, a minha preocupação com as posições iliberais de Rio sobre a imprensa, a justiça e o parlamento. Mas gostava de ter visto os jornalistas indignados com a posição do líder do PSD sobre os apoios à imprensa igualmente indignados quando ouviram António Costa descair-se, há semanas, com a seguinte frase: “Os jornalistas vivem sempre da desgraça alheia”. Onde estiveram?
Outro dos episódios que marcou o apogeu desta dualidade teve a ver com a polémica entre Nuno Melo e Rui Tavares. Em qualquer outro país europeu, uma figura política que foi cabeça-de-lista a uma eleição há menos de um ano e que se mantém próxima de um partido seria notícia por surgir numa aula da tele-escola. A partir dessa notícia, uns defenderiam, outros criticariam, outros julgariam indiferente. Se fosse Jaime Nogueira Pinto, que não foi candidato a nada nem integra partido nenhum, um ou outro deputado do BE também mandaria uma boca nas redes sociais e não se falaria mais nisso. Como foi um eurodeputado de direita, uma controvérsia no Twitter tornou-se um escândalo nacional.
No Expresso da semana passada, quatro colunistas do jornal defenderam Rui Tavares e uma notícia dava a história como motivo de preocupação, imagine-se, da direção do PSD. Luís Aguiar-Conraria considerou que o CDS “perseguiu” o fundador do Livre e que pretendia “censurá-lo”, tornando Rui Tavares o primeiro censurado na história de Portugal a aparecer semanalmente na RTP e na última página de um diário nacional. Conraria comparou também a situação de Tavares aos ataques de que Pedro Passos Coelho foi alvo aquando da sua ida como professor-convidado para a universidade, talvez esquecendo que a tele-escola não é lecionada a universitários (mas a crianças) e que Passos Coelho saiu da praça pública e do combate político há quase três anos (coisa que não se pode dizer de Tavares).
Honestamente, o vídeo em questão do historiador não me chocou. Não compreendo é metade dos argumentos utilizados para o defender e muito menos a dimensão dada ao caso (inclusivamente, pela bancada do CDS). Sobre o secretário de Estado que aproveitou uma pandemia para dar negócio a um amigo, por outro lado, ninguém disse nada – nem uns, nem outros. A tabela do campeonato dos holofotes pode então registar:
Twitter: 4 – Malandragem com dinheiros públicos: 0.
Quanto à brigada das redes sociais e à sua vocação de polícia política, não me esqueço da facilidade com que este ano um deputado do PS chamou prostituta (“Qual é a sua esquina?”) a uma internauta, criou um perfil alternativo para dizer que a conta com que insultara a cidadã era falsa (apesar de já ter sido citado na imprensa através desta) e passou alegremente entre as gotas da chuva, não sendo notícia, tema de colunas de opinião ou razão de escandaleira. Os moralistas do regime, nesse dia, fizeram-se de parvos ou ficaram sem wi-fi em casa. A sua moral, pelos vistos, tem cartão partidário. E é nisso que discordo de Nuno Melo: isto não é marxismo cultural; são só uns sonsos.