Este cantinho europeu à beira-mar plantado, onde vive um povo que não se governa nem se deixa governar, é o lugar certo para estacionar espiões que por cá podem trabalhar, longe de olhares curiosos e com o sossego e à-vontade necessários à prática da atividade.

A fama já vinha de longe. Dos tempos da Segunda Guerra Mundial, quando as esplanadas, restaurantes e hotéis de luxo eram perfeitos para sacar informações preciosas que chegavam direitinhas aos senhores da guerra. Por essa altura, deu grande impulso à economia nacional o negócio do urânio que vendíamos sem peso na consciência aos dois campos opostos do teatro de guerra.

A guerra para nós é um negócio e pode mesmo ser promissor. Basta continuarmos sem vergonha na cara a justificar todos os casos que vêm a público como ingenuidades, distrações, boa-fé, cumprimento de normas, rotinas. E não adianta argumentar com queixas e denúncias. Se não apareceu no jornal ou na TV, ninguém viu ou ouviu.

Moscovo usa como ninguém este recreio para espiões. Até porque aqui ninguém acredita que alguém no Kremlin esteja interessado em informações que chegam de Portugal. É o cenário perfeito. Quando a coisa dá para o torto, os responsáveis anunciam os mais variados inquéritos, que é o mesmo que dizer: enquanto os resultados chegam e não chegam, esquece-se o caso e o espião encontra outra forma de continuar a atividade. Cereja em cima do bolo: aqui há um partido disposto a colaborar, muito habituado a estas coisas da clandestinidade e que é visto como um partido pacífico e amigo da democracia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em Portugal, foi possível um Presidente de Câmara da capital ter escapado incólume ao fornecimento de dados de cidadãos críticos à embaixada russa. Como se não bastasse, outro Presidente de Câmara, poucos meses depois, acha normal invocar, outra vez, a ingenuidade e a burocracia para colocar russos a acolher refugiados ucranianos. Os dois têm em comum uma reação: sorriem quando lhes é sugerido que o regime de Putin está interessado na informação e pode usá-la na perseguição aos seus inimigos.

Os portugueses não se levam a sério nem levam o país a sério. Usam a nossa pequena dimensão no concerto das nações para desvalorizarem as consequências do que aqui se passa. Mesmo quando o que aqui se passa é muito grave e contraria todas as regras de uma democracia ocidental.

O que se passou (ou será que ainda passa?) na Câmara Municipal de Setúbal é uma vergonha e não precisamos de nenhum inquérito para o concluir, como também não precisámos do célebre inquérito na Câmara de Lisboa para ter a certeza de que a autarquia denunciou dissidentes ao regime russo.

As declarações públicas do Presidente da Câmara de Setúbal sobre o caso fazem-nos temer o pior. Este representante da nossa democracia acha que fez tudo bem e, a menos que alguém lhe prove o contrário, continuará a usar os amigos russos para acolher e talvez mesmo aconchegar os refugiados ucranianos que fogem do terror que os russos estão a espalhar nas suas terras. O Kremlin e Putin agradecem e garantem que vão continuar a investir em Portugal. Por cá no pasa nada!