Primum non nocere ou “primeiro, não prejudicar” é um termo de bioética muito utilizado em Medicina. Significa que, primeiro e antes de tudo o mais, devemos não fazer mal. Tudo o resto vem depois, e não antes.

Exemplo 1: Encerramento de escolas.

8 de Março: Fausto Pinto, médico e Cardiologista, enquanto director da Faculdade de Medicina de Lisboa, assina um comunicado em que se suspendem todas as aulas que impliquem contacto com os doentes.

9 de Março: o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas recomenda a suspensão de todas as atividades letivas presenciais nas escolas e nos hospitais e centros de saúde associados.

10 de Março: UNICEF e Organização Mundial de Saúde (OMS) publicam recomendação sobre cuidados a ter nas escolas para evitar  a propagação do SARS-CoV-2, não recomendando o encerramento das mesmas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

12 de Março: o Conselho Nacional de Saúde Pública, com a concordância da Direcção Geral da Saúde (DGS), faz uma  recomendação contra o encerramento generalizado dos estabelecimentos de ensino.

12 de Março: Fausto Pinto, agora enquanto presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, critica o Conselho Nacional de Saúde Pública, questiona a sua competência, e recomenda ao Governo português a aplicação de “medidas restritivas”.

12 de Março: o Governo português divulga a decisão de encerrar todas as escolas a partir de dia 16 de Março.

6 de Abril: a revista Lancet publica um artigo de revisão que não encontra qualquer evidência de benefício do encerramento de escolas na evolução da Covid-19.

15 de Maio: Fausto Pinto, enquanto presidente do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas, afirma à Renascença que o regresso às aulas presenciais representa um risco desnecessário.

Exemplo 2: Fique em casa.

10 de Março: as recomendações da DGS para protecção geral contra a Covid-19 falam de etiqueta respiratória, lavagem frequente das mãos e distanciamento social (mais de 1 metro entre pessoas). Não há recomendação para que as pessoas em geral fiquem em casa.

13 de Março: movimentos na internet promovem que as pessoas fiquem em casa.

18 de Março: o Presidente da República declara o Estado de Emergência em Portugal (com 642 casos confirmados, 2 óbitos, 20 internados em UCI).

20 de Março: o Governo publica o decreto que regulamenta o Estado de Emergência. Nele é decretado confinamento obrigatório não só para os doentes com Covid-19, mas também para os infectados sem sintomas e para todos os contactos sem doença e sem sintomas que as autoridades de saúde mantenham em vigilância. Há também limitações para sair do seu domicílio para todos os outros cidadãos, mais severas para os maiores de 70 anos, os imunodeprimidos, os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos, ou seja, bem mais de 50% de toda a população portuguesa.

25 de Março: o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas recomenda que todas as pessoas que entram no País, vindas de outros Países, nomeadamente os nossos emigrantes que pretendem passar a Páscoa em Portugal, sejam obrigadas a permanecer em quarentena durante 15 dias.

7 de Abril: um estudo científico da China, a aguardar publicação, sugere que a transmissão do SARS-CoV-2 ocorre muito mais frequentemente dentro de casa do que ao ar livre.

Exemplo 3: Medicamentos: hidroxicloroquina e outros.

11 de Março: a Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos reconhece a ausência de estudos que permitam recomendar um tratamento específico contra o SARS-CoV-2. Mesmo assim, afirma que “pode ser considerado esquema terapêutico experimental”, em doentes com Covid-19 grave, com remdesivir (ou lopinavir/ritonavir) e cloroquina (ou hidroxicloroquina).

31 de Março: a Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos actualiza as suas recomendações, especificando recomendar o uso de hidroxicloroquina em qualquer doente com Covid-19.

20 de Abril: um artigo científico, publicado, manifesta preocupação sobre o uso generalizado de medicamentos experimentais na Covid-19, considerando-o  injustificado e perigoso.

22 de Maio: um estudo científico, publicado no Lancet, não encontra benefício mas sim aumento de mortalidade com o uso de cloroquina e de hidroxicloroquina em doentes com Covid-19.

27 de Maio: a OMS suspende os estudos em curso sobre o uso de hidroxicloroquina em doentes com Covid-19.

28 de Maio: o Infarmed e a DGS suspendem o uso de hidroxicloroquina nos doentes com Covid-19.

Exemplo 4: Máscaras.

25 de Março: o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas “recomenda o uso generalizado de proteção individual, como o uso de máscaras pela comunidade”.

3 a 5 de Abril: a Ordem dos Médicos, o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, e Fausto Pinto (enquanto presidente desse conselho mas também enquanto diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em entrevistas seguidas à RTP3, SIC e TVI) recomendam o uso generalizado de máscaras pela população.

13 de Abril: a DGS publica uma norma sobre o uso generalizado de máscaras pela população. Nela é afirmado que as máscaras não evitam a infecção do próprio mas poderão talvez reduzir a capacidade de alguém infectado infectar outros, e que não existe demonstração da eficácia do uso generalizado de máscaras pela população. Nesse contexto, “é de considerar o uso de máscaras por todas as pessoas que permaneçam em espaços interiores fechados com múltiplas pessoas”.

3 de Maio: o uso de máscara passa a ser obrigatório em transportes públicos, serviços públicos e comércio e restauração.

21 de Maio: um artigo científico, publicado no New England Journal of Medicine, a revista médica mais conceituada do Mundo, afirma que “sabemos que o uso de máscaras fora das unidades de saúde oferece nenhuma, se alguma, protecção”, e que “o desejo do uso generalizado de máscaras reflecte uma reacção reflexa à ansiedade pela pandemia”, e também que existe “preocupação de que os utilizadores de máscara poderão ter uma tendência aumentada para mexer na face”.

Ou seja, ao longo da evolução desta pandemia, na ausência de dados sólidos, na dúvida, na incerteza, o que fizeram intervenientes supostamente com responsabilidade e poder de decisão? Primum non nocere? Pelo contrário. Nesta pandemia foi mais Primum nocere. Na dúvida, pecar por excesso de medidas foi a postura dominante, sem consideração com o mal que seguramente fariam, nem preocupação com a incerteza do bem que não fizeram.