No dia 9 de maio, quando deste lado se celebrava o Dia da Europa ao som da nona sinfonia de Beethoven, na Rússia de Putin, celebrava-se o Dia da Vitória, com uma parada militar na presença de 140.000 agentes das forças armadas russas. Esta celebração com tanta pompa e circunstância é habitual na Praça Vermelha. Afinal, foi a última grande vitória internacional da Rússia, e causou a morte a mais de 20 milhões entre civis e militares, tendo justamente entrada direta para as efemérides da identidade nacional.
Putin, subiu ao pódio e em pouco menos de 10 minutos fez um discurso com quatro grandes temas: a união dos russos em torno da sua história de sofrimento e dos seus valores internos, a importância das forças militares que têm que se manter poderosas para enfrentar “qualquer eventual ameaça”, a importância da Rússia na história do mundo contemporâneo, e as condições de Moscovo para cooperação na “comunidade internacional”. Em conjunto, estes quatro pontos são essenciais para perceber Moscovo e o seu comportamento internacional, simultaneamente defensivo e intrusivo.
Quando se referiu a valores, Putin exultou a coragem do povo que, com o sangue de todas as famílias e etnias da União Soviética, pagou um preço altíssimo para assegurar a manutenção do império (bem, a palavra império é minha, mas era de um império que se tratava). De seguida enalteceu o “patriotismo” e a “lealdade” dos russos. De uma só penada fez um discurso de união nacional com valores identitários concretos, que pouco têm a ver com os ocidentais. Nestas coisas, as palavras não são escolhidas ao acaso. Uma sondagem feita o ano passado pela fundação alemã Friedrich-Nauman concluiu que 70 por cento dos russos não estão interessados na liberdade de expressão, 66 por cento acham que o governo tem o direito de espiar os cidadãos, e 60 por cento são a favor de uma economia mais controlada pelo estado e de uma relação mais estreita entre o estado e a igreja. Por outras palavras, a ausência de tradição democrática e a curta e devastadora experiência com a economia de mercado nos anos 1990, levaram a maioria dos russos a aceitar a repressão como o regresso a uma normalidade desejada. Quer gostemos quer não, a legitimidade interna tem muitas formas.
Aliás, Putin foi recebido como um salvador. O homem forte e decidido que iria voltar a pôr a Rússia nos eixos à boa maneira histórica: tirando do caminho quem lhe fizesse frente (empresários, jornalistas, democratas), trocando de cadeira com Dmitri Medvedev para não perder o controle da nação, usando os petrodólares para criar ilusões de crescimento económico, distribuindo riqueza pelos sectores chave da sociedade, controlando a imprensa, instrumentalizando a Igreja Ortodoxa, e voltando a usar vocabulário patriótico, nacionalista e excecionalista. Tornou-se ele próprio o “pai da nação”, ganhando apoio interno para uma política externa ousada, que recuperasse o prestígio e glória internacionais da Rússia humilhada.
O que explica os restantes temas do discurso – a glorificação das forças armadas, as condições da cooperação internacional, e a importância do uso da força para conter ameaças à soberania. Na verdade, as ameaças a Moscovo são quase inexistentes: nem sequer a NATO, que figura como ameaça vital nos documentos estratégicos de segurança nacional, põe em perigo a existência da Rússia. Mas é necessário um fantasma comum e com valores diferentes para justificar a doutrina internacional russa – a soberania como valor essencial do direito das nações e o consequente direito de defesa de fronteiras e dos cidadãos russos que vivem fora delas, a promessa da contribuição russa para um mundo multipolar, cooperação só quando o Kremlin é tratado em igualdade de circunstâncias, a exigência do respeito pela sua esfera de influência, e a legitimidade do uso da força caso estas sejam violadas.
Trata-se de uma política externa dura, de mão de ferro, à la império do século XIX. Mas é uma doutrina que legitimou a guerra na Geórgia (2008) e a anexação da Crimeia (2014). É a doutrina que legitima uma relação privilegiada com partidos políticos europeus pró-Moscovo (desde o Syriza à Frente Nacional), e a intromissão subliminar, através do acesso remoto e divulgação de informação destinada a influenciar eleições democráticas. São métodos subversivos que, para o Kremlin, na sua visão nacionalista, são perfeitamente aceitáveis (afinal Putin foi agente do KGB), e não colidem com o direito de soberania. Afinal, a diplomacia secreta era indispensável em 1800, e a guerra e a anexação no estrangeiro próximo, justificada na defesa dos cidadãos e esferas de influência, eram também práticas legítimas comuns.
O problema fundamental é que esta visão da ordem internacional tem cada vez mais adeptos. Cada vez há mais “putinianos” no mundo ocidental. Cidadãos europeus, saudosistas da história imperial do continente, que vêm em Putin o último resistente de uma glória que já lhes pertenceu. Partidos políticos e movimentos europeus que se candidatam a eleições e escolhem Putin com principal aliado, nem que seja para sublinhar a sua essência antieuropeia. E agora o próprio presidente americano, que ontem recebeu o ministro dos negócios estrangeiros russo, Sergey Lavrov, como representante de uma nação igual, ainda que a relação turbulenta com a Rússia já tenha valido duas demissões de alto nível na administração americana – o general Mike Flynn, conselheiro para a Segurança Nacional, por alegados contactos ilegais com o embaixador russo durante a campanha, e agora o diretor do FBI, James Comey, por razões ainda pouco claras, mas relacionadas com a Rússia.
Assim, em nome do patriotismo, soberania e prestígio internacional, Moscovo tem vindo a ganhar terreno, impondo a sua visão da política externa sem entraves significativos, e introduzindo-se paulatina e impunemente na vida interna das democracias ocidentais. E para isso, quer queiramos quer não, tem tido a conivência de muitos, no coração do sistema liberal. Por isso é tão importante debater a crescente influência dos “putininos” ocidentais. Eles existem. Mesmo que na Europa se celebre o 9 de maio com hinos à paz e apertos de mão e na Rússia se assinale com paradas militares, salvas de canhões, e discursos de recuperação de grandeza.