Uma das constatações mais importantes dos nossos dias é que a democracia não pode ser dada como adquirida. Durante os anos 1990 e o início dos anos 2000 generalizou-se a ideia de que se tratava de um regime indestrutível: que como não tinha rival ideológico e estava enraizada justamente nos países mais prósperos do mundo. Era uma questão de tempo para que se espalhasse por todo o globo. Mesmo quando começou a haver os primeiros sinais, nos anos 2010 de que não se tratava de uma verdade assim tão absoluta, usou-se o argumento que ninguém tinha feito uma revolução para acabar com os regimes democráticos e instaurar outros no seu lugar.

Ainda assim, hoje começa a ser lugar comum assumir que a democracia se encontra ameaçada. Já falamos aqui em como a crise financeira de 2008 degenerou numa crise identitária – isto é, dividiu as sociedades ao meio e uma parte significativa das populações passou a lutar (o que muitas vezes quer apenas dizer votar em partidos) por quem lhes prometesse uma reestruturação social, muitas vezes com referência ao passado, em que o nacionalismo substituiu a democracia no centro do valores dos estados. E como o nacionalismo raramente vem solteiro, tem-se apresentado, muitas vezes, de mãos dadas com a xenofobia, a ausência de liberdade, e a promessa de alterações radicais quer nas Constituições dos países, quer na pertença ao projeto europeu. Assim não há manifestações na ruas exigindo mudanças de regime, muito menos golpes de estado com o mesmo intuito. Há golpes públicos palacianos (muitas vezes reforçados até por referendos) que se justificam por interpretar sem enganos a vontade popular.

Cada vez que escrevo sobre um caso destes – e já o fiz sobre a Rússia, a Turquia, a Polónia e a Hungria, pelo menos – chovem críticas sobre como todos os seus líderes são eleitos democraticamente. Nas urnas e (às vezes) sem fraude. É verdade. Mas também não há novidade nenhuma nisso. Basta voltarmos aos anos 1930 para encontrarmos uma galeria sinistra de homens que ganharam legitimidade nas urnas e depois transformaram as democracias noutro tipo de regime. Também não estou a tentar fazer comparações.

Estou apenas a dizer uma coisa simples: as eleições livres, justas e regulares são apenas um elemento de um regime democrático. Melhor ainda, são apenas o método que se encontrou para reforçar a liberdade de escolha das populações.

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Uma democracia, para ser entendida como tal, tem de conter, pelo menos mais quatro elementos: em primeiro lugar, a liberdade de expressão, de imprensa e de associação têm de ser asseguradas. Não há eleições sérias sem acesso livre à informação. Depois cabe a cada um decidir o que lê e ouve e como escolhe. Mas nas condições descritas acima.

Em segundo lugar, a democracia só funciona se se conseguir fazer uso do círculo virtuoso descrito por Tocqueville: desacordo, debate e negociação – até que se chegue a um apoio maioritário relativamente a questões fundamentais para a nação com o menor número de loosers sociais possível. Mas, é importante ressalvar, que o acordo não se faz através de coerção ou por partido único. Isso já é outra história.

Em terceiro lugar, é preciso que haja, como explicou Montesquieu, uma separação entre os poderes legislativo, executivo e judicial. Nos tempos que correm conviria também acrescentar uma separação o mais rigorosa possível entre os poderes político e económico. Sem isso, sem que uns vigiem os outros, mais tarde ou mais cedo há quem queira sobrepor-se, abalando o equilíbrio frágil em que a democracia assenta.

Em quarto lugar é preciso um compromisso (ainda que não escrito) em respeitar as regras do jogo: os eleitos, a menos que legitimados por uma maioria muitíssimo confortável e não apenas de um partido político por maioritário que seja, pode mudar as regras do jogo. Ou seja, as Constituições e Leis Fundamentais dos países são para respeitar. Caso contrário assistimos ao assassinato da democracia por dentro.

Sabe-se da ciência política que as instituições são resilientes. O que tem uma leitura dupla: se durante décadas achámos que as democracias eram resilientes – tão resilientes que as demos por garantidas – quaisquer instituições que as substituam (e tendencialmente serão mais autoritárias) serão resilientes também. Mais, ainda que resilientes, as democracias assentam em equilíbrios frágeis que podem ser postos em causa em momentos de crise, pelas próprias populações. Afinal são contratos sociais e quando um dos signatários pressente que a sua identidade, forma de vida e bem-estar estão em causa, ou quando o outro signatário não está a corresponder às cláusulas assinadas, denuncia-o.

É certo que as elites tradicionais têm sido incapazes de lidar com uma série de problemas que deflagraram na Europa na última década e que nos fizeram chegar a uma espécie de fim de ciclo. Mas isso não nos pode impedir de ver que há uma diferença significativa entre líderes eleitos democraticamente e a democracia como regime político. Se isso continuar a acontecer e se não nos opusermos a estes fenómenos estamos condenados a ser testemunhas de um declínio europeu que não nada tem geopolítico. Tem a ver com os valores que fizeram de nós aquilo que somos. E que eu gostaria de ver reformados, modernizados, mas, essencialmente, preservados.