Qual é, afinal, o problema das esquerdas com Trump? Trump propôs-se rasgar tratados de comércio, reduzir compromissos militares, aumentar o défice. Não é isso, num mesmo patamar de demagogia, que desejam os inimigos do “neoliberalismo” e da “austeridade”? Muitos eleitores da esquerda americana não viram onde estava o problema, e votaram Trump. São racistas, diz-se agora. Mas em 2008, quando elegeram Obama, também foram racistas?

O problema da esquerda é que Trump partilha muitas das suas ideias, mas não é um dos deles. Trump não foi apenas candidato republicano, mas exibiu uma desenvoltura inquietante perante o politicamente correcto em temas como a imigração ou o jihadismo. Muitos querem-no “fascista”, segundo o velho costume comunista de chamar fascistas a todos os adversários. Trump, porém, não está à frente de massas de camisas castanhas num país destruído pela inflação e pelo desemprego. A reunião de supremacistas brancos que comoveu tantas boas almas teve 200 pessoas.

Obama fez constar que Trump pareceu espantado na Casa Branca, o que os distraídos entenderam como mais um facto deprimente, mas que os profissionais leram como um sinal de que Trump, sem organização nem ideias fixas, é barro para ser moldado. Kissinger notou logo: “Trump não tem bagagem, não depende de nenhum grupo em particular”. Trump é como o Brexit, que depois de votado, ninguém sabe bem o que é: uma opção que não define, mas que precisa ela própria de ser definida. Desde logo, Trump começa com uma força limitada: é o presidente eleito mais impopular de sempre. Precisará das oligarquias para governar. Por isso, enquanto os distraídos esperam a invasão da Polónia, os profissionais, à direita e à esquerda, movem-se para conquistar posições na nova administração.

A elite conservadora, que Trump derrotou nas primárias, já começou a marcar pontos, desde logo com a possibilidade de Mitt Romney ter um papel chave no governo. Os democratas, pelo seu lado, não desistiram. Há rumores de que Trump aceitaria alguns na Casa Branca. No congresso, até Bernie Sanders já anunciou que “pode colaborar”. Sanders aproveitou ainda para dizer que está farto da “elite de esquerda” (the liberal elite), e deseja redescobrir os trabalhadores que votaram Trump. É compreensível: daqui a dois anos, os democratas no senado terão de defender dez lugares em estados que Trump ganhou. Uma das principais patrocinadoras de Sanders no Partido Democrata, a congressista Tulsi Gabbard, não teve dúvidas em aparecer ao lado de Trump esta semana.

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A esquerda radical brada contra a “normalização” de Trump e exige manifestações e obstrucionismo, convencida de que esta é a oportunidade de provocar uma guerra civil. Talvez não tenha sorte. O New York Times já descobriu que Trump não vai perseguir Clinton nem torturar suspeitos, e entretanto o suposto racista indicou uma filha de imigrantes indianos como sua embaixadora na ONU.

As oligarquias ocidentais perderam o pé em sociedades agitadas pela incerteza e pela mudança. Os “populismos” são para os oligarcas uma ameaça. Mas são também, ao contrário do que se diz, uma oportunidade: representam um perigo com que assustar os eleitores (veja-se Merkel na Alemanha), um estilo que podem imitar (veja-se Renzi em Itália), ou ainda uma força desorganizada, e por isso susceptível de manipulação (como Kissinger espera que seja o caso de Trump).

Trump, para além de uma personalidade duvidosa, tem péssimas ideias (releiam o primeiro parágrafo). Tudo pode correr mal. Mas as oligarquias esperam explorá-lo e salvar-se. Noutras paragens, é a mesma coisa: os conservadores britânicos cavalgam o Brexit, a Comissão Europeia encaixou o Syriza, e em Portugal, como o presidente nos ensinou esta semana, António Costa domesticou o PCP e o BE, que hoje zelam pelo défice, pelo euro e pelos salários dos banqueiros. Trump não deve ser mais difícil.