É uma história semelhante à de tantas que têm ocorrido por Lisboa. Um investidor compra um prédio que tem inquilinos pouco sexy (idosos, todo o tipo de associações ou coletividades nada cool, estão a ver a cena) e dá como terminado o contrato de arrendamento para fazer obras, reabilitar o imóvel e dar-lhe um uso mais adequado a uma Lisboa que é a menina dos olhos do muito premiado turismo nacional, em processo de gentrificação (esse horror das pessoas que gostam de cidades repletas de casas degradadas) e um quilométrico etc.

Neste caso, o inquilino era uma coletividade de reformados que ocupava a loja de um prédio há quinze anos. Isso mesmo, algo pouco apelativo para ‘rentabilizar’ um imóvel e fazê-lo valorizar para, quem sabe, vendê-lo com valor multi multiplicado no futuro. Nada de estranho ou reprovável, não fora o senhorio que enxotou a coletividade de reformados ser um partido político que clama ferozmente contra todas as leis do arrendamento que diminuem as garantias dos inquilinos e aumentam as defesas dos senhorios. Que é como quem diz, tendo em conta o passado, um partido que clama contra todas as alterações que trazem justiça e racionalidade ao mercado de arrendamento.

É certo que o arrendamento em causa que se pretende terminar não é anterior a 1990, o tempo dos arrendamentos eternos mesmo quando os inquilinos não pagavam renda anos a fio – e que é o estado de coisas que o dito partido considera bom e belo. Mas, convenhamos, a ética e a moral não se alteram consoante mudam as leis. Se é mau, ultra-neo-liberal e outras coisas feias, terminar contratos de arrendamento a idosos com um quadro legal, também é com outro.

O partido, adivinharam, é o PCP, esse grande proprietário imobiliário que, apesar de vociferar contra o lucro, prefere obter rendimento de um espaço em vez de permitir a permanência de uma coletividade de reformados. Verdade: podem ter considerado os reformados da CURIFA (Comissão Unitária de Reformados e Idosos da Ajuda) pouco inclinados para a dialética marxista e com ímpetos capitalistas. Porém o mais provável é tratarem-se de reformados que têm naquele espaço um local de encontro, de construção de redes sociais (da espécie não digital) e de passagem do tempo que seria, de outro modo, de solidão. Como há tantas por Lisboa e que, em se tratando de senhorios não comunistas, o PCP grita com ferocidade se tocam neste tipo de inquilinos. Como referem os reformados da coletividade, “Não compreendemos como o PCP ainda no sábado andou a distribuir panfletos no mercado da Ajuda a protestar contra a lei dos despejos e depois toma esta atitude”.

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Mas não pensem que a hipocrisia se restringe ao PCP. Há uns tempos, Diogo Moura, do CDS de Lisboa, contava-me como o BE (ainda no vice-reinado de Ricardo Robles, em todo o caso sem agitar os estados de alma dos restantes bloquistas) entendeu despejar, de um edifício camarário em Marvila, a Casa do Concelho de Castro D’Aire, coletividade com mais de mil sócios, alegando (falsamente) que não tinham atividade e que lá pretendiam instalar uma creche.

Em primeiro lugar importa, claro, expor a hipocrisia de PCP e BE (um serviço público em si mesmo), que seguem caminhos contra os quais se posicionam politicamente e vociferam com estrépito. Acresce a isto, que não é pouco, a falta de lisura do PCP-palavra-dada-é-palavra-honrada ao negar a vontade de afastar a CURIFA, o que é desmentido pelos reformados e pela Junta de Freguesia.

Em segundo lugar lá temos de chegar ao bom hábito dos partidos portugueses de exigirem e imporem níveis de ética, responsabilização, até mesmo de assistencialismo social aos privados que, quando nas mesmas condições, recusam assumir para si e para o estado. Convenhamos que um partido político ou uma câmara municipal têm responsabilidades para com o bem comum e os agentes mais vulneráveis da comunidade que o normal privado, proprietário, empresa ou qualquer outra coisa, não tem.

A questão imobiliária não é filha única. Há poucas semanas Pedro Braz Teixeira notava como os governos sobem consecutivamente o salário mínimo — que é um fator na diminuição de pobreza, de facto — mas que mantêm praticamente estagnado o indexante dos apoios sociais, o que lhes permite poupar nas prestações sociais. O esforço de crescimento de custos que se exige às empresas é claramente superior ao esforço que os governos aceitam para si.

Os impostos sobre imobiliário com que esmifram os proprietários deixam isentos os partidos políticos, mesmo os grandes proprietários como o PCP. Um caso de má prática médica num hospital privado é julgado nos tribunais civis ou criminais, onde os juizes estão disponíveis para fazer justiça ao queixoso. O mesmo caso de má prática médica, num hospital público, é julgado num tribunal administrativo onde o juiz normalmente toma a peito a missão de defender o organismo público que está a ser acusado por algum caçador de fortunas à espera de enriquecer com a indemnização que espera extorquir ao pobrezinho do hospital público. (Assim mais ou menos como o Tribunal da Relação do Porto defende os homens criminosos das malvadas das mulheres que eles violaram ou espancaram com selvajaria.)

Apesar de ser ilegal e, em se tratando de igual comportamento em empresas privadas, sujeito a pesadas multas pela Autoridade para as Condições do Trabalho, o estado contrata de forma permanente pessoas que mantém com vínculo precário e recebendo através de recibos verdes. Evidentemente este é um estratagema para angariar mais clientelas partidárias, mantendo-as na expetativa de uma futura contratação não precária. Mas continua a ser um double standard a que os partidos lançam mão.

Seria bonito termos eleitores que exigissem ao Estado que cumprissem escrupulosamente aquilo que impõe aos privados. Ainda não temos. É por isso que os partidos, para os negócios próprios ou os do Estado, continuam a dar-nos papas e bolos (reservando para si, é escusado dizer, macarons Ladurée).