O primeiro passo para se resolver qualquer problema é reconhecer que ele existe. Temos, por isso, razões para estar muito pessimistas com o futuro do Serviço Nacional de Saúde, já que quem nos tem governado foi cúmplice da sua deterioração, enquanto vai tecendo loas aos serviços e acusando os outros de o quererem destruir. Durante os últimos quase seis anos, foi frequente o alerta, nestas páginas, sobre aquilo que estávamos a fazer aos serviços públicos. Hoje começamos a sentir isso na nossa vida, mas, lamentavelmente, o Governo vai escudar-se na pandemia como antes se desculpou com Pedro Passos Coelho.

Qualquer pessoa que hoje precise a sério do SNS tem todas as razões para ficar aterrada. Começo por partilhar dois casos, omitindo alguns detalhes para proteger a privacidade das pessoas envolvidas.

O primeiro caso: é um doente oncológico, tem de estar internado. Mas cada vez que precisa de cuidados intensivos anda de hospital em hospital à procura de cama vaga. Não é preciso ser médico para concluir os efeitos nefastos destas mudanças.

O segundo caso é de uma pessoa com sinais de AVC. Chama-se o INEM e é levada para o Hospital de Setúbal, ali fazem os exames e é transferida para estar em observação no hospital do Barreiro, onde ficará 48 horas. Informação é pouca. Quando tem alta vem sem diagnóstico e pior do que lá entrou – não anda e nem sequer se deram ao trabalho de alertar a família para isso, apesar de ter sido explicitamente solicitada essa informação. Em casa fica-se a saber que numa das noites foi preso à cama, ainda que nada o justificasse.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Fez-se queixa dirigida ao presidente do conselho de administração do hospital do Barreiro com conhecimento para a ministra da Saúde, a Entidade Reguladora da Saúde, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e a Deco. Quem respondeu? A Entidade Reguladora e o hospital através da directora clínica. Todos os outros ignoraram. É assim que fica o exercício do direito de cidadania: ignorado pela maioria dos responsáveis. Valha-nos a Entidade Reguladora. Mais grave ainda é a ausência de interesse em perceber o que correu mal e fazer um esforço para melhorar. As pessoas são tratadas como se fossem umas chatas, a incomodarem a rotina. É mais uma queixa, é mais um papel.

Não é, pois, de estranhar que o nosso retrato no último relatório da OCDE seja tão negativo. E só não é pior porque os números não apanham toda a realidade de degradação dos serviços de saúde e do medo que assola qualquer pessoa, minimamente informada, de ir parar ao hospital.

Eis alguns dados que é possível recolher do relatório da OCDE.

As consultas presenciais caíram 66% em Portugal, a mais alta quebra no conjunto da OCDE, seguindo-se a Austrália (40%) como se pode ler aqui (pg. 58). As consultas e internamento de urgência colocam igualmente o país no topo da lista das maiores quebras em 2020 comparativamente com 2019. Em Portugal a redução foi de 28%, seguindo-se o Canadá com 24% e o Reino Unido com 21%. (ver pg. 63). E mais de um terço das pessoas em Portugal (34%), tal como na Hungria (35%), dizem que não tiveram os cuidados de saúde de que precisavam durante os 12 meses da pandemia de 2020 a 2021 (ver nas pgs. 128 e 129).

Vejam como foi a pandemia, dirão os que estão habituados a desculpar-se. Não, não foi. Pelos dados partilhados percebe-se que o efeito nos cuidados de saúde em Portugal foi muito mais negativo que noutros países. Temos a obrigação de perguntar porquê. A pandemia chegou numa altura em que o SNS já estava muito doente. E a responsabilidade da degradação do SNS é obviamente do Governo e dos partidos que o apoiaram, que fez de conta que o defendia.

O problema é grave pelos inevitáveis efeitos que vai ter em matéria de mortalidade. Em Agosto de 2021, últimos dados disponíveis no Eurostat, Portugal já tinha de novo um excesso de mortalidade superior ao da média da União Europeia. A prazo temos razões para temer o pior.

Além destes efeitos, a degradação do SNS agrava a desigualdade – como aliás também é possível ler no relatório da OCDE. Primeiro, em Portugal, cada um de nós suporta em média 40% dos custos com saúde – a gratuitidade não é verdade. E, antes da pandemia, cerca de 4% dos portugueses com rendimentos mais baixos (o quintil mais baixo), diziam não terem os cuidados médicos de que precisavam. Não nos enganaremos se preconizarmos que boa parte dos 34% que afirmaram não ter tido os cuidados médicos em 20-21 são pessoas com os rendimentos mais baixos.

A degradação do SNS está a piorar a qualidade de vida dos portugueses e a agravar as desigualdades. Neste momento só se espera que essa degradação do SNS não tenha chegado a um ponto em que deixou de ser o melhor sítio para nos tratarmos, porque ali estão os melhores profissionais. Existem já sinais preocupantes, por via da dificuldade em encontrar médicos e até enfermeiros que queiram ali trabalhar e não podemos dizer que a explicação seja apenas salarial. Basta irmos aos hospitais para ver em que condições se trabalha em algumas especialidades, ou mesmo nas urgências.

O que se tem passado tem responsáveis, são exactamente aqueles que têm jurado amor eterno ao SNS. Não investiram nos serviços públicos, preferiram fazer uma política pela negativa – desfazer o passado –, em vez de adoptarem medidas que melhorassem a vida de todos os portugueses e não apenas dos seus eleitorados. Preferiram adoptar medidas numa lógica do “porque sim”, em vez de estudarem e escolherem as soluções que melhor servem os cidadãos.

Claro que do ponto de vista eleitoral foi óptimo e parece até continuar a ser muito bom, a crer na popularidade de uma ministra da Saúde que o que fez pelo sector foi contribuir para a sua degradação. PS, PCP e BE têm de assumir as suas responsabilidades, de seis anos em que optaram por distribuir o que não tínhamos, em vez de investir nos serviços públicos fundamentais, que incluem a Saúde. A esmagadora maioria dos portugueses apoia o SNS, quem não apoiou o SNS foi quem nos tem governado.