1 Decorrerá hoje, segunda-feira 19 de Setembro, com início pelas 11 horas da manhã, o funeral da Rainha Isabel II. Neste momento solene, em que milhões de pessoas em todo o mundo prestam homenagem à Rainha, creio que é particularmente devida uma reflexão sobre o significado político, intelectual e moral dessa imensa homenagem.

Perante a imensa adesão popular à chamada “pompa e circunstância “ das homenagens que há mais de uma semana têm tido lugar nas ruas do Reino Unido, uma saudável perplexidade intelectual e um saudável debate pluralista vem ocorrendo nos países livres — a começar, obviamente, pelo Reino Unido.

Gostaria aliás de saudar em particular os autores dissidentes — em regra republicanos do tipo politicamente correcto, dado que os autoritários de direita têm permanecido em silêncio — que ‘corajosamente’ desafiam os sentimentos dominantes. Receio ter de confessar que acredito que eles estão profundamente equivocados. Mas a livre expressão desse equívoco é um bem inestimável. Como gostava de sublinhar John Stuart Mill, é o livre confronto com o erro que permite clarificar e reforçar verdades vivas.

2 Uma primeira crítica de alguns republicanos politicamente correctos consiste em dizer que a monarquia britânica simboliza um “mumificado sistema de classes e a nostalgia imperial”. Não deixa de ser curioso, em contrapartida, que a esmagadora maioria dos artigos publicados em homenagem à Rainha e à monarquia tenham sublinhado o pluralismo, a moderação e a soberania do Parlamento — virtudes que, mesmo os republicanos politicamente correctos terão de reconhecer estarem associadas às democracias liberais modernas — seguramente às Repúblicas, espero eu que eles ainda sejam capazes de dizer.

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Limito-me a recordar extractos que citei aqui há alguns meses, no artigo sobre o Jubileu de Platina. Escrevendo no conservador Telegraph de Londres, o conservador Alistair Health sustentou:

“Crucialmente, o papel central da Monarquia na vida britânica consiste em moderar a nossa política e a nossa sociedade. A nossa Monarquia tem servido como trincheira contra o extremismo, contra demagogos, tiranos, fascistas, comunistas e woke cancellers. A nossa Monarquia reduz dramaticamente a ameaça do extremismo, da violência ou dos excessos ideológicos — uma qualidade que o resto do mundo reconhece no Reino Unido.” (Quinta-feira, 2 de Junho, p. 16).

Poderá ser dito que esta resposta não é surpreendente, vinda de um conservador. Mas talvez seja interessante ouvir uma outra resposta, vinda do líder do Partido Trabalhista, Sir Keir Starmer, também no Telegraph de Londres:

“Que a Grã-Bretanha tenha sempre rejeitado o extremismo é em não pequena parte devido à nossa ideia sobre quem somos como povo: uma ideia nascida de um sentido de estabilidade que não pode existir sem instituições fortes. […] Tal como a Rainha nos tem liderado ao longo dos últimos 70 anos, tudo o que ela nos tem ensinado — sobre o dever, a tolerância, a humildade e a responsabilidade — continuará a guiar-nos na próxima era. Nós somos um país melhor e mais luminoso por causa dela.” (Quarta-feira, 1 de Junho, p. 16).

3 Talvez não seja deslocado voltar a sublinhar esta confluência da direita e da esquerda democráticas britânicas na comum adesão à Monarquia constitucional e na comum condenação dos extremismos da esquerda e da direita (ainda que, talvez por isso mesmo, “esquerda” e “direita” não sejam termos frequentes no mundo de língua inglesa).

Esta aversão britânica a revoluções e contra-revoluções foi motivo de admiração e de estudo no continente europeu, desde pelo menos a Revolução (chamada  Gloriosa) de 1688 — uma revolução que ostensivamente declarou como principal objectivo restaurar as antigas liberdades constitucionais da Magna Carta de 1215 e, por essa via, tornar desnecessárias ulteriores revoluções.

Em bom rigor, a moderna monarquia parlamentar britânica emergiu dessa revolução relutante de 1688. Após tremendas guerras civis entre dogmatismos rivais — o republicanismo protestante de Cromwell e o absolutismo monárquico continental de Carlos I e depois de Jaime II — um “bloco central” de moderados republicanos e de moderados monárquicos optou sabiamente por estabelecer a “soberania do Rei no Parlamento”.

O historiador francês Elie Halévy chamou “Milagre da Inglaterra moderna“ a essa excêntrica capacidade britânica de evitar a partir de 1688 as revoluções e contra-revoluções em que o continente europeu esteve mergulhado, sobretudo após a (republicana) revolução francesa de 1789. A (republicana-liberal) historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb precisou o alcance desse “milagre inglês“:

“O verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ (a famosa expressão de Halévy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem recorrer à Revolução “.

4 Volto a recordar que também Winston Churchill — o primeiro dos 14 Primeiro-Ministros que a Rainha Isabel II acompanhou em reuniões semanais (antes de dar posse ao 15º, Liz Truss) — sublinhou esse milagre reformista da cultura política britânica. Evocando a disposição política de seu pai, o conservador-liberal Lord Randolph Churchill, disse Winston:

“Ele não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain] nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa”.

5 Dirão os nossos republicanos politicamente correctos (com a concordância silenciosa dos revolucionários de direita) que Churchill era apenas um exemplo paradigmático da admiração pelo “mumificado sistema de classes britânico” e de “nostalgia imperial”.

Talvez fosse, direi eu. Mas, nesse caso, ocorre perguntar: terá sido por causa do “mumificado sistema de classes britânico” e da “nostalgia imperial” que ele liderou a resistência aos totalitarismos nacional-socialista (nazi) e comunista, quando estes pareciam triunfantes no continente europeu?

Foi aliás em Paris, em Setembro de 1936, que Churchill terá recordado esse tal “mumificado sistema de classes” britânico:

“Como poderemos nós, educados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil? […] Pois eu afirmo que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para não termos de nos submeter a tal opressão!”

Em Maio de 1938, também em Paris, Churchill terá voltado a recordar o “mumificado sistema de classes” britânico e a “nostalgia imperial”:

“Não temos nós uma ideologia — se tivermos de usar essa palavra horrível, ideologia — não temos nós uma ideologia própria na liberdade, numa Constituição liberal, no Governo democrático e parlamentar, na Magna Carta e na Petição de Direitos?”

6 Os nossos republicanos politicamente correctos terão alguma dificuldade em criticar Churchill, embora ultimamente alguns extremistas tenham começado a denunciá-lo como “racista”. Ficariam no entanto surpreendidos se soubessem que os ideais da Monarquia constitucional britânica não foram inventados por Churchill nem pela Rainha Isabel II. Em Março de 1763 (ainda antes da revolução americana de 1776 e muito antes da revolução francesa de 1789) disse no Parlamento o então Primeiro-Ministro britânico William Pitt (the Elder):

“O homem mais pobre pode na sua ‘cottage’ desafiar toda a força da Coroa. A ‘cottage’ pode ser frágil; o seu telhado pode abanar; o vento pode soprar através dele; as tempestades podem entrar, a chuva pode entrar — mas o Rei de Inglaterra não pode entrar; todas as suas forças não se atrevem a atravessar as fronteiras da habitação em ruínas”.

Eis uma curiosa expressão do “mumificado sistema de classes” britânico — que obrigava o Rei, já em 1763, a respeitar a lei e a propriedade privada do seu súbdito mais pobre.

7 Não gostaria, no entanto, de ser demasiado severo para com os críticos republicanos politicamente correctos. Eles exprimem com genuinidade um contraste entre duas culturas políticas que é importante reconhecer, estudar e discutir.

Esse contraste foi sobretudo sublinhado por Karl Popper (1902-1994) — o célebre filósofo austríaco, exilado na Nova Zelândia durante a II Guerra, depois acolhido em Londres e galardoado pela Rainha com o título de Sir — que enfaticamente associou esse contraste a Edmund Burke. Disse Popper que Burke tinha detectado a profunda dissonância cognitiva entre duas culturas políticas — marítima e continental — que exprimiam uma dissonância filosófica mais profunda: entre racionalismo crítico e racionalismo dogmático.

O racionalismo dogmático — de ascendência Cartesiana e em pleno fulgor no chamado Iluminismo continental — era fundado na crença ingénua nas chamadas “certezas” ditadas pela ‘Razão’ (sempre com R maiúsculo). Por isso, alimentava a centralização política e a uniformização ditada pelos poderes centrais, alegadamente ‘iluminados pela Razão’. Este dogmatismo racionalista gerava necessariamente um dogmatismo rival, em regra irracionalista, e essa era a origem da tendência continental para a perpétua oscilação entre revolução e contra-revolução, entre revolução e Antigo Regime — como aliás Alexis de Tocqueville também enfaticamente observou, ainda no século XIX.

Em contraste, prosseguiu Popper, o racionalismo crítico e anti-dogmático (com ascendência em Adam Smith, David Hume e Edmund Burke, entre outros) assentava no falibilismo e desconfiava por isso de todos os grandes planos de transformação social, alegadamente ‘Racionais’, dissociados da experiência e da tradição. Por isso, este racionalismo crítico é favorável à mudança gradual, por ensaio e erro, e à convivência pacífica e descentralizada entre diferentes instituições e modos de vida da sociedade civil, independentes do estado. Defende, em primeiro lugar, o Parlamento, fundado na concorrência entre pelo menos dois partidos rivais, como lugar primeiro de controlo do poder político — e confia no poder moderador e imparcial do Chefe de Estado que, na tradição britânica, deve ser o Rei (ou a Rainha).

8 Dirão os republicanos politicamente correctos (bem como os revolucionários de direita, que permanecem agora em silêncio) que esta ideia de liberdade como tradição assenta no tal “mumificado sistema de classes e na nostalgia imperial” (exactamente o mesmo que o nacional-socialismo nazi e o comunismo soviético disseram na década de 1930, contra o chamado “capitalismo parlamentar oligárquico” britânico ).

Eu gostaria de responder tranquilamente que esta ideia de liberdade como tradição certamente assenta na recusa dos niilismos revolucionário e contra-revolucionário que celebram o capricho da vontade “certa” — contra a soberania de regras gerais de boa conduta que colocam estritos limites ao capricho da vontade. Como disse Edmund Burke em 1791:

“Ser educado num lugar de estima; não ver nada baixo ou sórdido desde a infância; ser ensinado a respeitar-se a si próprio; ser habituado à inspecção crítica do olhar público; (…) ter tempo para ler, para reflectir, para conversar; ser ensinado a desprezar o perigo na defesa da honra e do dever; (…) possuir as virtudes da diligência, ordem, constância e regularidade, e ter cultivado um respeito habitual pela justiça comutativa — estas são as circunstâncias que formam o que eu designaria por aristocracia natural (por contraste com feudal).”

9 Recordo com saudade que Karl Popper gostava de me recordar esta passagem de Edmund Burke como exemplo do que ele considerava um elemento crucial da perene resistência britânica contra todos os autoritarismos, de esquerda ou de direita. Popper designava essa misteriosa adesão britânica à liberdade e ao dever como “gentlemanship”: a capacidade de uma pessoa não se levar a si mesma demasiado a sério, mas de levar muito a sério os seus deveres — sobretudo quando a maioria à sua volta só fala nos seus direitos.”