Em janeiro de 2021, entrou em vigor um novo Tratado de Proibição das Armas Nucleares. No entanto, nenhuma potência nuclear se vinculou a este novo acordo. Pode-se perguntar o que tem Portugal a ver com isso, pois não temos armamento nuclear ou um programa nuclear civil. Mas somos parte de uma aliança defensiva – a NATO – que é, também, uma aliança nuclear. E alguns partidos e movimentos, nomeadamente o PCP e os Verdes, vieram levantar a questão, defendendo que Portugal devia comprometer-se com o novo Tratado.

Para citar Lenine, “o que fazer”? Não sou, pessoalmente, grande fã do armamento nuclear. E imagino que poucos leitores o sejam, apesar do encorajamento irónico de Stanley Kubrick no seu filme clássico Dr. Estranhoamor para “pararmos de nos preocupar e amarmos a bomba!” As mais de dez mil ogivas na posse das 9 potências nucleares seriam capazes de destruir toda a humanidade e, provavelmente, toda a vida na Terra. No entanto, a estratégia militar é o reino dos paradoxos. Este enorme potencial destrutivo teve o efeito de tornar uma Terceira Guerra Mundial um suicídio garantido. Daqui resultou um forte efeito de dissuasão que tornou as armas nucleares um poderoso fator de paz ou, mais rigorosamente, de ausência de grandes guerras.

Podemos, então, ficar descansados? Não. A racionalidade da dissuasão nuclear é muito clara. Mas não faltam exemplos na história de guerras acidentais e de líderes que não agiram de forma racional. Conhecemos alguns casos em que um conflito nuclear poderia ter sido iniciado por engano. Por exemplo, em 1983, um tenente-coronel soviético, Stanislav Petrov, desobedeceu às instruções que tinha, porque desconfiou – com razão – de um erro no sistema de radar envelhecido que supostamente detetara um ataque nuclear dos EUA.

Este Tratado de Proibição das Armas Nucleares, por muito ineficaz que seja, exprime uma frustração bem real e compreensível de muitos países com a ineficácia do anterior Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). O número de Estados com armas nucleares praticamente duplicou desde a entrada em vigor desse tratado em 1970, com a Índia, o Paquistão e a Coreia do Norte a adquirirem esse tipo de armamento. E, provavelmente, a lista não está fechada. Mais, o Tratado de Não-Proliferação também compromete as 5 potências nucleares aí reconhecidas a um compromisso sério de redução gradual do armamento nuclear, para o seu estatuto não se transformar num privilégio exorbitante. Ora, desde o início do século XXI, os avanços neste campo pararam. Hoje assistimos, pelo contrário, a uma nova e perigosa corrida ao armamento nuclear.

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Neste Mundo cada vez mais conflituoso, os 30 Estados Membros da NATO beneficiam da chamada dissuasão nuclear extensiva. Ou seja, os EUA, em particular, ao abrigo do artigo 5º de tratado fundador da NATO, estendem aos seus aliados uma garantia de segurança também nuclear. Portugal e os demais países membros não-nucleares, por isso, devem – e têm – demonstrado solidariedade com os seus aliados nucleares. Em contrapartida, é de esperar que do lado da Administração Biden essa preocupação com a coesão da Aliança Atlântica também se verifique. Efetivamente, há rumores de uma alteração na postura nuclear dos EUA. Fala-se de uma declaração norte-americana de “não-uso em primeiro lugar” ou de “propósito único” relativamente ao seu arsenal nuclear. Qualquer mudança a este nível deve passar por uma efetiva consulta e real disponibilidade para ter em conta as preocupações dos demais aliados. Uma declaração de “propósito único” bem elaborada e adequadamente negociada para refletir as preocupações do resto da NATO poderia dar cumprimento a uma promessa de Biden, aumentar a pressão para um indispensável diálogo entre potências nucleares para travar esta nova corrida ao armamento e, ao mesmo tempo, preservaria a coesão no seio da Aliança. Se, pelo contrário, depois da retirada do Afeganistão e do AUKUS, e num campo tão delicado como o nuclear, assistirmos a um novo episódio de unilateralismo de Biden – mesmo que num estilo mais diplomático do que o de Trump – isso seria uma confirmação preocupante de que os episódios anteriores não foram acidentais. E levantaria questões sérias sobre a coesão da Aliança Transatlântica.

Em conclusão, ao contrário do que defendem os comunistas portugueses, o nosso país não deve seguir o exemplo da Áustria, de Malta ou da Irlanda, os únicos Estados da União Europeia, até ver, a assinar este novo tratado. Nenhum Estado membro da NATO o assinou. Na verdade, e como de costume, este tipo de pressões e críticas apenas surge, livremente, nos países ocidentais. A Rússia ou a China avançam com novos programas nucleares a grande ritmo, sem liberdade de contestação interna. Essas e várias outras potências nucleares têm recusado qualquer conversa séria no sentido de inverter estes novos investimentos no seu arsenal. A ideia de que no contexto geopolítico atual o Ocidente deveria desarmar-se unilateralmente é um disparate muito perigoso (outro disparate muitíssimo perigoso – que ficará para futuros textos – é a tendência, na Europa, para colar às nossas indústrias de defesa a etiqueta de “socialmente danosas”!). Isso só nos deixaria vulneráveis à chantagem nuclear de potências agressivas que desprezam os nossos interesses e os nossos valores, em nada contribuindo para um Mundo mais pacífico ou sem armas nucleares.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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