“Primeiro estão os nossos pobres, os desempregados, e não essa gente da Síria ou sei lá de onde”. “Sinto vergonha como europeu: são seres humanos, temos obrigação de os receber”.

Todas ouvimos frases semelhantes nas últimas semanas e não foram ditas apenas em Portugal. Na enxurrada das opiniões que as fundamentam, escutam-se coisas inverosímeis e disparatadas a par de algumas ideias sensatas. A crise dos refugiados continua a despertar velhos fantasmas, a agitar a opinião pública, a indignar uns e outros. Como sempre quando as posições se extremam, a solução está algures no meio-termo.

Permitam-me que seja franco: a principal razão para o desconcerto europeu a que estamos a assistir reside nos egoísmos nacionais e na falta de uma resposta comum europeia para a crise. Nenhuma solução exclusivamente nacional resolverá o problema. Tal como na crise do euro é com mais e não menos integração europeia que a questão dos refugiados pode ser resolvida.

Começo por contrariar uma ideia feita dos últimos dias: a decisão de fechar as fronteiras schengen por parte da Alemanha, já imitada por outros países europeus, não é ilegal nem representa o fim da liberdade de circulação e do chamado sistema schengen, como apressadamente foi proclamado por muita gente. O Tratado da União Europeia prevê a reintrodução do controlo nas fronteiras nacionais em caso de emergência, primeiro por um período de 10 dias e depois até ao máximo de 2 meses, sem que isso, desde que devidamente justificado, represente uma violação do direito europeu.

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Ora a crise dos refugiados, que já é a maior ameaça à unidade europeia dos últimos anos, só é inesperada nas suas dimensões. O próprio FRONTEX, como explico abaixo, já alertara para essa possibilidade. E se os países da União Europeia não estavam preparados para lidar com um problema desta magnitude, deviam estar.

Desde logo, estariam preparados se já tivessem instalado o espaço de Liberdade, Segurança e Justiça nos termos previstos pelo Tratado: isto é, se tivessem cumprido os objectivos estabelecidos pelo menos desde 1999. Parece simples, e é simples, mas o egoísmo dos governantes nacionais impediu-o. Enredados nos habituais jogos de poder, prisioneiros das agendas eleitorais de 28 países, 28 sistemas políticos, 28 eleitorados, uma intrincada e inextrincável teia, são presas fáceis da demagogia que alimenta ideologias políticas perigosas (do género das que levam jornalistas em serviço a pontapear gente indefesa e em fuga). E não souberam ou não quiseram decidir, criar mecanismos, adoptar procedimentos, instalar e activar recursos que teriam permitido responder de outra forma à dramática crise dos refugiados. Não quiseram, não souberam, ou não puderam, por exemplo: criar um estatuto comum efectivo de refugiado europeu; distinguir sem ambiguidades refugiados de migrantes de natureza económica; estabelecer um sistema de acolhimento comum, com registo uniformizado; definir os termos da recolocação automática dos refugiados; dedicar mais recursos aos países de origem dos refugiados; agir com sucesso contra as redes de tráfico humano; colaborar com eficácia na gestão das águas e fronteiras externas.

Um caso exemplar é o FRONTEX, a agência europeia para a gestão das fronteiras comuns. Cabe-lhe garantir a vigilância e a supervisão das fronteiras externas da União Europeia, por onde passam os refugiados a “caminho da salvação”. O FRONTEX planeia, coordena e implementa operações conjuntas nas fronteiras externas, forma especialistas, conduz investigação sobre controlo fronteiriço, gere o corpo de guardas fronteiriços, apoia os Estados no repatriamento dos imigrantes ilegais, partilha informação. E faz análise de risco sobre a situação nas fronteiras externas. Só em 2014, salvou mais de 173 mil pessoas em risco. Um fundamental e poderoso agente da luta contra a crise dos refugiados, certo? Nem por isso…

Como acontece noutras políticas europeias, o FRONTEX depende de recursos alheios. Não possuindo equipamentos e meios próprios suficientes ou adequados (o orçamento não lho permite), recorre ao que os Estados-membros podem facultar – como navios, pessoal, veículos – e ainda tem de lhes pagar. Se a acção dos países não acompanhar a gestão da agência europeia, o resultado será escasso, sobretudo face às necessidades. É o que sucede neste caso. Na sua actividade de gestão de risco, nota o euobserver, há pelo menos 3 anos que o FRONTEX avisa os responsáveis nacionais do risco de uma explosão de refugiados a chegar pelo Mediterrâneo, Turquia e Grécia. Resposta dos governos? Um olímpico encolher de ombros.

E se o conselho extraodinário de ministros dos assuntos internos e da justiça chegou ao fim sem acordo sobre os 120 mil refugiados (na Grécia, Turquia e Hungria) que a Comissão há alguns dias propôs recolocar, em complemento dos 40 mil propostos em Maio – e em relação aos quais houve acordo no referido conselho -,  a razão é mais uma vez o egoísmo nacional. Um punhado de países opôs-se, o que não teria acontecido caso a decisão fosse tomada por maioria e não por unanimidade. Faltou União, sobraram soberanias nacionais.

A Europa é uma das regiões ricas do Mundo. Acolher refugiados é uma obrigação legal, moral e humanitária, que não vai fazer afundar o continente. Claro que não se pode confundir a protecção de gente em risco de vida nos seus países com a ideia de que qualquer pessoa deve ter o direito de aceder livremente à Europa. A decisão sobre número de migrantes legais que cada país se dispõe a aceitar (talvez precisem de receber mais, até por razões demográficas) e a obrigação de acolher refugiados não são a mesma coisa, como por vezes se faz crer.

Mas no imediato trata-se de resolver uma crise sem precedentes, e fazê-lo da melhor forma possível, tendo a noção clara de que não é possível simplesmente abrir as portas e deixar entrar toda a gente, sem regras, sem controlo, sem limites. Não é possível porque nenhum sistema de apoio do mundo resistiria. E a Europa deve continuar a gerir as suas fronteiras externas. De momento, repito, trata-se de uma emergência, a que só um continente unido poderá responder. Mas muros, arame farpado, criminalização da migração ilegal (criminosos são os traficantes), recusa de asilo aos perseguidos e ameaçados, homens, mulheres e crianças, são indignos do continente da liberdade e da prosperidade. Quem os proclama e instala não tem lugar entre os europeus, na Europa dos valores e da liberdade. Os refugiados não são refugiados porque querem, mas porque não podem senão sê-lo. Não buscam melhores condições de vida (teriam direito de o fazer, claro, mas essa é outra discussão), buscam vida.

Tal como na crise da zona euro, talvez a crise dos refugiados ensine aos líderes – e aos povos – europeus uma lição simples: quanto menos Europa houver, mais os problemas são difíceis de resolver. Unidos, os europeus podem encarar o futuro com optimismo; desunidos, sob a bandeira de egoísmos nacionais caducos, só os espera mais do mesmo daquilo que no passado caracterizou o continente – miséria. E guerra.