Começo com Rodrigo da Fonseca em 1835, citado por Maria de Fátima Bonifácio: “Os empregos são o nosso campo de batalha.” De facto, desde o advento do liberalismo no Séc. XIX, a caça ao emprego no Estado – se possível ao nível de dirigente – é uma obsessão partidária, que 200 anos depois permanece inalterada, independentemente dos regimes. Sobrevive a todos.
A possibilidade de nomeação para cargos públicos de filiados e dedicados militantes dos partidos políticos é uma das mais importantes recompensas que um partido obtém quando ganha eleições. É aceitável e entendível, que uma vez constituído um governo, os seus membros queiram ser assessorados e acompanhados de pessoas da sua confiança política e pessoal. É assim em todo o mundo, mesmo em democracias consolidadas. O problema dos abusos não se encontra nestas situações, pois essas pessoas (são umas centenas) entram quando o governo inicia funções e saem quando os titulares dos cargos políticos abandonam os lugares que ocuparam.
Grave e lesivo do interesse público é o aproveitamento da titularidade de um cargo político – temporário, como o são sempre em democracia – para enxamear a administração pública, central e local, os reguladores, as empresas públicas e concessionárias, com a nomeação de afilhados, amigos e companheiros de partido, que por lá ficam após o termo do mandato de quem os nomeou. Não se tratando de lugares de confiança política, quem vier a seguir ocupar o cargo político, terá de com eles trabalhar ou – o mais normal – colocá-los numa prateleira, admitir outro e o erário público passa a sustentar dois, quando não três salários para um mesmo lugar.
Para dificultar estas nomeações de pessoas de confiança pessoal ou partidária para cargos que não são de confiança política e para os quais se pretende qualificações e experiência, não propriamente fidelidades, criou-se há uns anos uma nova instituição denominada CRESAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública), de modo a dar alguma transparência a tais nomeações. Se era essa realmente a intenção, por aí se ficou.
E o truque em curso para tornar a CRESAP irrelevante – pedindo desculpa por chamar truque ao que é simplesmente um insulto à inteligência dos mágicos – é criar a qualificação e a experiência à pessoa que o governo pretende nomear, antes da mesma ser avaliada pela CRESAP. E como isso se faz? Nomeia-se esse apaniguado em “regime de substituição” para o lugar de direção vago, aguarda-se uns meses antes de abrir concurso e quando o concurso é aberto, lá está o apaniguado a concorrer, com o currículo que obteve exactamente com essa “nomeação provisória”. E nestas condições, as possibilidades de ser o escolhido são enormes. A CRESAP faz figura de “verbo de encher”.
Estes nomeados de ocasião, aos quais sobra em descaramento o que bastas vezes carecem em competência, são nomeados ora para lugares de importância vital ora relativa, mas nem por isso destituídos de poder efectivo. Em princípio, o compadrio que os levou ao lugar é o mesmo que vão praticar no exercício das suas funções, igualmente na escolha dos seus adjuntos, subdiretores, assessores, consultores, etc. Uma correia de transmissão de lugares a pessoas de confiança ou merecedoras de recompensa, que pode acabar no porteiro, bastando, para isso, que haja vacatura desse lugar.
Se esta prática na administração pública e em instituições do Estado fosse copiada noutras entidades e noutras actividades, isso teria consequências bem mais graves. Mas como estamos no domínio de lugares em que a grande responsabilidade é sobretudo a obediência política, imagina-se que não virão daí mortos e feridos, não fosse o que sucedeu há poucos anos em Pedrogão, acontecimentos que a incompetência de nomeados políticos nos meios de socorro foi muito relevante na dimensão da tragédia.
Mas este verdadeiro truque das nomeações em “regime de substituição” pode ser eliminado pela própria CRESAP de modo simples, ou se esta entender que o estatuto não lhe permite ter essa competência, pode, pelo menos, solicitá-lo publicamente ao Parlamento. Basta passar a este modelo: todas as pessoas poderão candidatar-se ao lugar vago, inclusive o designado em regime de substituição, mas para efeito de avaliação apenas conta a experiência e a qualificação do concorrente à data da vacatura do lugar e não à data em que o concurso é iniciado.
O actual modelo é uma perversão das regras constitucionais da igualdade, além de prejudicar seriamente a probidade e a credibilidade que se pretende presumir por parte dos dirigentes da administração pública. A maioria do Parlamento pode alterar esta situação sem o acordo do partido no poder. Mas quererá fazê-lo ou prefere manter o modelo actual, para quando for governo poder executá-lo, para o seu próprio grupo político? Os menos novos ainda se lembram da promessa do antigo Primeiro-Ministro António Guterres, após a vitória eleitoral de 1999: “No jobs for the boys”. Passaram mais de 20 anos. Viu-se…