Parecia que Kim Jong-un andava mais sossegado. Não levantou à voz durante a visita do presidente norte-americano à Ásia, e deixou-o debater com os parceiros da região a melhor estratégia para conter o regime enquanto, julgava-se, Pyongyang não tinha capacidade de atingir solo norte-americano. O verniz estalou todo de uma só vez quando Trump chegou a casa e decretou que a Coreia do Norte era um estado que patrocinava o terrorismo, passando a uma nova categoria: a de estado pária, sujeito a isolamento internacional, duríssimas sanções e demais medidas necessárias para travar os avanços nucleares.

Rex Tillerson, secretário de Estado de legitimidade reforçada depois de se ter tornado público o seu diferendo com o presidente, sem que isso tivesse beliscado o seu lugar na Casa Branca, terá sido o homem mandatado para executar aquilo que os jornais norte-americanos chamam a reformulação da “estratégia da paciência” levada a cabo por Barack Obama. De uma contenção mais ou menos intensa, protagonizada pelo anterior presidente e os seus parceiros regionais (incluindo Pequim), era preciso passar a uma estratégia assertiva, que levasse Pyongyang a não ter outra solução senão sentar-se à mesa das negociações com a hipótese “desnuclearização total” na carteira das possibilidades.

Tillerson não se terá poupado a esforços: deslocação de escudos antimíssil para a Coreia do Sul, reforço da parceria com o Japão (em início de processo de militarização) e outros vizinhos asiáticos, exercícios militares conjuntos, demonstrações de força. O secretário de Estado até terá convencido o presidente a deixar cair a sua retórica anti chinesa (viram como Trump foi apologético da posição económica da China, a acusada tantas vezes de responsabilidade direta no estado do desemprego norte-americano?) para ter o gigante regional a seu lado. Se me perguntassem, eu diria que tudo valia para arrancar a Pequim a ajuda necessária para fazer a Coreia do Norte esmorecer.

Isto poderia ser posto de outra maneira, mas a realidade é esta: Pequim viabiliza a existência de Pyongyang. Fornece-lhe quase tudo o que a Coreia não consegue obter sozinha – e é muito. Daí o enorme poder que Pequim tem nas mãos, usado a conta gotas, para manter americanos, coreanos e demais estados da região numa dependência securitária muito difícil. E os avanços e recuos da China – que vai aproveitando para admoestar os EUA por contribuírem para a instabilidade regional – tenham, com certeza, deixado os decisores americanos nervosos. Por isso a marcha atrás de Donald Trump, o discurso laudatório, a confiança pública de que as relações sino-americanas estavam a melhorar consideravelmente.

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Tudo parecia ir bem, exceto num pequeno pormenor. Uma semana depois de a Coreia ter mudado de estatuto nas instituições diplomáticas americanas, a China readquiriu o estatuto de “batoteira” na secretaria de Estado do Comércio. O estado norte-americano, através desta instituição, desencadeou uma investigação relativamente ao não cumprimento das regras importação do alumínio chinês para os Estados Unidos e uma outra que pretende desencobrir subsídios ilegais entregues pelo governo chinês ao mesmo tipo de indústria. Este tipo de posições é relativamente comum, mas as queixas partem quase sempre do sector privado. Um estado entrar neste tipo de contendas – especialmente os Estados Unidos – é um sinal de que se pretende iniciar a tal “guerra económica” que Trump prometeu tantas vezes, mas da qual depois pareceu recuar. Os economistas americanos estão muito pessimistas. Depois de um precedente destes, é muito difícil um regresso à dita normalidade.

Não era segredo que o presidente norte-americano ganhou as eleições com um programa protecionista. Também já se calculava que o Departamento de Estado estava a ser cada vez mais controlado por conservadores moderados, que refreavam os ânimos mais belicistas e as saídas retóricas mais incendiárias, enquanto iam semeando novas estratégias mais consistentes. Simultaneamente ia-se percebendo que Peter Navarro, o Sr. Protecionismo (que acumula uma série de cargos de relevo na Casa Branca, incluindo o de diretor da White House National Trade Council, criado pelo presidente Trump à sua medida) estava a ganhar terreno relativamente a posições mais económicas mais liberais. Estes dois polos contraditórios – o protecionismo não vai bem com uma diplomacia regional aberta assertiva em que vários estados se entendem por objetivos comuns – poderiam vir a embater em determinado momento. Discretamente, sem grande alarido internacional, embaterem agora.

Pode não se saber a verdadeira dimensão que estas medidas terão em Pequim, mas são, com certeza, vistas como um duro golpe que reverte o acordo de dez pontos que Xi Jinping articulou e foi aceite pelo presidente Trump na sua recente visita à Ásia – onde os dois chefes de estado pareciam estar em grande sintonia. No Oriente, o valor da reciprocidade internacional é tido em conta como um indicador de como se deve percecionar o comportamento de um estado e como se deve proceder para com ele. E se Trump observa clara distinção entre a política de segurança (a China é um parceiro, pelo menos no que respeita à Coreia do Norte) e a política económica (a China, afinal, faz babata contra os americanos), não devemos esperar que todos os outros estados tenham uma visão semelhante.

Talvez nada disto tivesse importância imediata se a Coreia não tivesse lançado um míssil balístico capaz de atingir solo norte-americano. Isso vem eliminar quase todas as possibilidades de lidar com a crise com as estratégias usadas até aqui. A contenção não resultou. As sanções também não. Os países vizinhos não têm capacidade (ou não querem) para fazer frente à ameaça. Uma guerra preventiva seria simultaneamente um desastre humanitário e um risco demasiado grande para correr – agora que a possibilidade retaliação é palpável. Há especialistas na Ásia que dizem que assim que a Coreia do Norte obtivesse meios ofensivos suficientes a sua escalada nuclear irá parar a escalada nuclear. Mas nenhum chefe de estado prudente pode fazer cálculos estratégicos com base na sorte e nos humores flutuantes de um líder dificílimo de perceber. Assim, os EUA estão reféns da China – o único estado verdadeiramente capaz de travar Pyongyang – e da sua política uma no cravo outra na ferradura. E como se vê, não havia pior altura para Navarro ter ganho a Tillerson. Perderam os Estados Unidos e perdeu o mundo.