“Ontem demos um passo importante, deixando para trás a austeridade, o memorando e a troika”, disse Alexis Tripas, sábado, 21 de Fevereiro. Mas avisou: “a guerra não está ganha”. E o nosso novo Hércules, Varoufakis, depois dos seus muitos trabalhos, também decidiu declarar ao Charlie Hebdo: “Matámos a troika”. O célebre ministro da propaganda de Saddam Hussein, Muhammad Al-Sahaf, “Ali, o comediante”, não teria feito melhor. Praticamente a única coisa que o Governo de Tripsas ganhou foi aquela ridícula mudança de nome da “troika” para “instituições” e coisas assim, como toda a gente percebeu. Bons comediantes, os do Syriza.

A palavra “ridículo” é importante. O Syriza já abundou em ridículo por várias vezes. As peregrinações europeias de Varoufakis mostraram, para além da arrogância (tratar os ministros das Finanças dos outros governos como se fossem seus alunos) e da pura e simples má-educação (chegar vinte minutos atrasado a uma reunião do Eurofin, e ainda por cima acompanhado de um repórter com uma câmara televisiva), uma dose substancial de ridículo. “Para além da arrogância e da má-educação” talvez não esteja bem. Porque o ridículo vive mesmo na arrogância e na má-educação.

Ou em coisas muito piores. Nas piores coisas, mesmo. Os chamados “regimes totalitários” contiveram sempre uma dimensão de ridículo muito apreciável. Não é preciso recuar muito no tempo, a Mussolini ou Hitler, onde a coisa é notória. Basta pensar na dinastia de monstrozinhos que reina sobre a Coreia do Norte. Ou, em menor escala, no regime do karateka Putin e no “chávismo”. E o horror islâmico, na terrível infantilidade daquela crueldade, é também um exemplo.

O ridículo é, com efeito, uma consequência da infantilidade. E não há problema maior em conceber a relação da infantilidade, que pode conviver às mil maravilhas com a inteligência, com a crueldade. A psicologia explica isso. Nos adultos, a coisa toma a forma de atitudes regressivas, que vão da pacata regressão ideológica (um fenómeno tristemente comum: voltamos, para negar a realidade, ao nosso cantinho originário de pensamento e de linguagem) até dimensões declaradamente patológicas. O que faz com que haja formas de ridículo que não têm graça alguma, antes pelo contrário. Fazem medo. Elas são o sintoma, o indício disfarçado, do Mal, se a maiúscula é permitida. Pense-se no anti-semitismo. Há algo mais ridículo do que as teorias conspiratórias em que o anti-semitismo abunda?

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O que é curioso, voltando agora ao Syriza, é como o ridículo passa tantas vezes desapercebido. Um exemplo. Marcelo Rebelo de Sousa, na TVI, elogiou no outro dia a capacidade de comunicação de Varoufakis. Pessoalmente, tenho uma muito genuína admiração pela inteligência de Marcelo Rebelo de Sousa, uma inteligência que é acentuada pelo gozo com que ele faz aquilo que faz. É verdade que, quando põe mentalmente o pé fora de Portugal, a coisa se esvai um bom bocado e tende a pensar a crédito com uma facilidade extraordinária. Mas isso é o menos, e uma pessoa prevenida salta e não liga. Agora que pense que o camarada Varoufakis é um bom comunicador, sem detectar o ridículo daquelas exibições, surpreende. Ou talvez não surpreenda muito, tendo em atenção que, no mesmo movimento de pensamento, criticou Maria Luís por esta se ter encontrado recentemente com Schäuble. Consta que parece mal. Uma coisa e outra são as duas faces no mesmo tipo de incompreensão. Em ambos os casos, ficou-se pela superfície da superfície. Mergulhou gentilmente na boa noite do mole consenso de esquerda, que adora as boas aparências. E, ainda por cima, sem graça.

Dei o exemplo de Marcelo Rebelo de Sousa porque ele está, é claro, muitos furos acima da média. Mas essa mesma ausência de percepção do ridículo político é muito comum. Uma das coisas verdadeiramente chocantes na reeleição de Sócrates foi uma pessoa dar-se conta quão imperceptível para tanta gente era o ridículo daquele sistema de negação da realidade em que Sócrates vivia e do qual fazia uma virtude agressiva permanentemente auto-reivindicada. Sócrates foi o maior exemplo recente do ridículo político em Portugal. E as consequências, como se sabe, não foram boas.

O ridículo é relativamente tolerável, e às vezes inescapável, na vida privada, sobretudo quando grandes sentimentos tomam conta de nós. Até tem, se me é permitido, algumas coisas a seu favor. E quem nunca tiver pecado no capítulo, que atire a primeira pedra. Ou, pensando melhor, não. As pessoas são distraídas, e às vezes não reparam no que fazem. Digamos: atirem a primeira pedra, se for esse o caso, só depois de terem reflectido muito.

Mas, em política, o ridículo tinha a obrigação de ser mais dificilmente tolerado. Talvez que uma maior sensibilidade ao ridículo, e uma maior liberdade em gozar com ele, nos tornasse mais sábios politicamente e mais atentos à realidade. Convém desconfiar do ridículo em política. Por detrás dele pode haver muito de péssimo. Ou a monstruosidade, ou, em casos menos terríveis, uma infantilidade que não recomenda ninguém para o pastoreio dos povos.

Muito provavelmente, a insensibilidade contemporânea ao ridículo tem algo a ver com o modo como as nossas sociedades foram invadidas pelo “politicamente correcto”. Um sistema de proibições, particularmente proibições de linguagem, invadiu tudo. Ora isso, que é em si mesmo ridículo, infantiliza e faz com que deixemos de ver o ridículo das coisas. A nossa atenção foi desviada para o medo de “parecer mal”. O problema é que medos assim nos deixam muito desprotegidos e nos impedem de prestar atenção à realidade, ou então levam-nos a fingir que não vemos nada. António Costa, coitado, que o diga. Gozar com o ridículo político faz bem. E isso não é, no caso do Syriza, “humilhar” os gregos. É só apontar o dedo àquilo que nos ameaça e nos pode bem cair em cima, também a nós, um dia.