É um exercício útil procurarmo-nos lembrar do que, ainda há bem pouco tempo, era o pensamento dominante no que respeita à Europa e à União Europeia. O exercício é útil porque nos revela como certas crenças que aparecem vestidas de uma certeza absoluta se esboroam de um momento para o outro, ou, pelo menos, sofrem transformações que as deixam irreconhecíveis.

Tomemos, como exemplo principal, a questão da soberania. Ela era militantemente recalcada. Fazia-se de conta – faziam de conta, entre outras, pessoas que agora defendem com paixão a soberania dos gregos – que o conceito se encontrava irremediavelmente ultrapassado e que desapareceria por completo, e sem deixar resíduos, assim que o decidíssemos. Ou, quando não era recalcada, quando se falava da questão da soberania, o mais das vezes procedia-se à sua crítica, em nome de uma realidade a vir que eliminaria todos os seus extraordinários malefícios.

Comecemos pelo recalcamento. Ele era de dois tipos. O primeiro era partilhado por uma boa parte da classe política e por certos teóricos do federalismo europeu. A classe política não via problema maior no esquecimento da coisa. Até porque a ideia de uma Europa indissoluvelmente unida, até aos seus mais ínfimos detalhes, aparecia vestida de uma tal beleza que só um louco a rejeitaria. Os teóricos do federalismo, por seu lado, iam buscar ao cosmopolitismo kantiano (e, antes, estóico) elementos para pensar a União Europeia como acreditavam que ela devia ser. Erradamente, de resto, porque se há na filosofia política de Kant uma efectiva importância concedida ao cosmopolitismo, este é, aos seus olhos, obrigatoriamente acompanhado de soberanismo. Os Estados permanecem perfeitamente activos no cosmopolitismo que ele imaginou. Kant é um pensador soberanista. De qualquer maneira, estas coisas não contavam também grande coisa para os federalistas. O Estado-soberano desapareceria sem quase deixar rastos.

O segundo tipo de recalcamento era mediático. Aí a ortodoxia era praticamente absoluta. Jornais e televisões davam quase sem excepção a ideia de que o “sonho europeu”, como carinhosamente se dizia, estava aí prontinho a passar à realidade, sem falhas nem desacertos. E, dada a extravagante facilidade de acreditar que está ao alcance do comum dos mortais, a piedosa crença no novo paraíso logo passou para a opinião pública. Duvidar era obviamente sinal de má vontade, senão de mau carácter. E falar de soberania quase provocava risota.

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Passemos agora à crítica. Para vários filósofos, como Jacques Derrida – refiro Derrida apenas porque ele é sem dúvida o mais conhecido de todos -, a transformação que deveria ocorrer na Europa residiria na passagem a uma situação na qual a palavra “soberania” só “por comodidade” continuaria a ser empregue. O Estado-soberano deixaria de ter qualquer lugar preeminente numa ordem europeia que desejavelmente viria em breve à luz do dia. E com inteira razão, já que todos os Estados soberanos são, por definição, “Estados párias”. A filosofia política deveria dedicar-se a pensar a “desconstrução” da soberania. Note-se que há pelo menos um mérito na crítica da soberania: ela leva o conceito a sério e não esquece, contrariamente ao que se observa com o seu recalcamento, a sua inscrição histórica na vida das nossas sociedades.

De um certo modo, todos estes propósitos parecem já, para a maioria das pessoas, propósitos longínquos. A crise, e particularmente a crise grega nos seus últimos tempos, lembrou que não é particularmente aconselhável imaginar a realidade como uma superfície muito lisinha e sem rugas nenhumas. Quando se age como se fosse assim, quando se esquece o vasto império das paixões na vida social e a diversidade antropológica e histórica das nações, criam-se monstros e o recalcado salta para a boca de cena com caras feias.

O artigo que Alexis Tsipras publicou no Le Monde a 31 de Maio é, de resto, um bom exemplo disso. Pedindo uma solução “definitiva” (nada menos do que isso) para a crise grega e declarando que um acordo com a Grécia, nos moldes em que o concebe, “marcará o fim da crise económica europeia” (ai sim?), acusa as célebres “instituições” de uma “obsessão” (a palavra aparece três vezes) neoliberal. O artigo acaba com uma ameaça ridiculamente literária: àqueles que pensam que a crise grega respeita unicamente aos gregos, lembra o Por quem os sinos dobram, de Hemingway. Como se sabe, o romance passa-se durante a guerra civil espanhola, que antecedeu outra guerra mais vasta. A solução para evitar o pior está à vista: restituir uma perfeitíssima soberania à Grécia e, ao mesmo tempo, financiá-la por inteiro. A monstruosidade lógica é também, pelo menos em parte, um efeito do retorno do recalcado.

No meio desta loucura, há quem chore o paraíso perdido que há poucos anos estava aí à mão de semear. Não parece muito sensato. Bem melhor é reconhecer que, independentemente da Grécia, a questão da soberania não é, mesmo do estrito ponto de vista simbólico, nada despicienda. E que a União Europeia deve arranjar uma maneira qualquer de folgar os laços que nos unem para continuar a existir. Os ingleses, que são mais inteligentes do que os outros, perceberam-no desde o princípio. Talvez o bom senso chegue algum dia a outras bandas. Porque a bicicleta de Delors conduzida por Juncker, um dia em que Angela Merkel não estiver lá para ajudar, vai direitinha a um muro.