O rosto (do latim, rostrum – tribuna para os oradores na praça pública), ao contrário do que afirma o bacoco deslumbramento pelo que se julga moderno, não é o território onde o simulado rigor da realidade se entrega à refrega da contestação ou à placidez publicitária. É sobretudo lugar de fome e aceitação, púlpito onde assomam pequenos fragmentos da memória, impulsos intermitentes de sentido que nos seduzem e guiam, breves de ternura e infâmia. Precioso fio que nos permite, dia a dia, construir às arrecuas um percurso que possamos chamar nosso: não foi para trás do rosto que Deucalião, filho de Prometeu (literalmente, o que pensa antes), e Pirra, filha de Epimeteu (literalmente, o que pensa depois), atiraram as pedras? A natureza de um grave é cair.
De acordo com Scruton, os homens são os únicos animais que revelam a sua individualidade nos traços do seu rosto: a boca, o olhar, a pele, mais do que feições, são signos de liberdade, de carácter e juízo. A relação que muitas línguas continuam a estabelecer entre a eliminação de um rosto (to deface, effacer, sfasciare) e o desvirtuamento ou a destruição não é, portanto, uma coincidência fútil: do vazamento dos olhos de pinturas e esculturas à destruição dos plácidos rostos dos Budas de Bamiyan, quantas não foram as vezes que a canalha lei do esquecimento se impôs brutalmente aos cavos desejos que se acolhem num rosto?
O desejo é a estrutura fundamental do ser que não se possui a si mesmo e que, consciente da sua finitude, intui o permanente risco da perda. O desejo – mais ainda, o amor – é a possibilidade concedida ao homem para, expondo-o ao tempo e à intempérie, cinzelar no rosto a permanência. O amor enquanto desejo é determinado pelo objecto a que aspira: ser livre do medo. A possibilidade de uma perda é, paradoxalmente, o ponto de partida para a determinação de amar porque a vida, na sua contínua aproximação à morte, não cessa de se perder. Assim, o que faz do amor um bem é o facto de ele não poder ser perdido. O rosto do homem é aquilo que ele se esforça por alcançar.
Mesmo que seja apenas cumplicidade ou companhia: chega a ser comovente o sincero desvelo com que Rilke atende as inquietações daquele jovem poeta que o procurou em busca de conselhos. Não muito antes, a publicação de O Livro de Horas fora acompanhada do mesmo silêncio de que apenas os deuses são capazes quando falam, aquele frio perigoso e justo que percorre a exactidão.
E, no entanto, nem por uma vez Rilke lhe responde com sobranceria, paternalismo ou condescendência: as grandes almas sabem que a verdade tem o seu próprio tempo e o que nos assoma ao umbral do rosto não é senão um vislumbre da certeza que antecede a indecisão da luz que sabemos existir muito para lá daqueles dias que, por não nos chegarem verdadeiramente a tocar, se tornam muito mais nossos do que os que, com cómica satisfação, asseveramos ter vivido. São os primeiros, contudo, espectros amedrontados à cabeceira, que nascendo desde então do desejo – essa adocicada experiência da fragilidade e sublime anuência a tudo quanto passa – definem o nosso rosto.
Que impressão terão deixado em Franz Xaver Kappus as missivas que Rilke lhe dirigiu, não poderemos saber. O empenho, contudo, que posteriormente dedicou à urdidura de competentes narrativas breves permite concluir que nem sempre a minuciosa enumeração dos nossos naufrágios – o fracasso, a desilusão, o falhanço e a perda – impede a alegria muda de ouvir na boca de outros “a fé numa qualquer beleza”. Que a natureza de um grave é cair, por exemplo.
Na mesma Paris e ao mesmo tempo que Rilke lhe respondia, um jovem tímido e galante – Reynaldo Hahn – continuava, do outro lado da rua, a compor como se a renascença francesa nunca tivesse terminado e as mulheres, a rua, os maneirismos e os excessos continuassem a obedecer às mesuras e punhos de renda do Seizième – nada do que acontecera após (dizia ele) se podia comparar ao que inexoravelmente se tinha perdido e, de facto, muito tempo depois de uma plácida adolescência nos burgueses arrondissements, os sonhos alentados e perdidos numa tarde dum banco de jardim continuavam a não garantir qualquer segurança pelo facto de nunca se terem realizado. São os próprios lugares que nos consomem e nos envelhecem – tenhamos nós ou não alguma vez lá estado; são eles que nos corroem, nos exaurem, nos devoram; são eles que nos garantem que a casca do pinheiro grande, cujas raízes cobertas de caruma imitam uma decrepitude muito mais nossa do que sua, continuará embalada pela melopeia das cigarras muito depois de sabermos ou podermos lá regressar.
Numa das muitas recepções da sociedade parisiense, conheceu um jovem igualmente tímido e galante – Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust – cujo rosto lhe revelou Baudelaire, Verlaine, Fauré, Offenbach, Hugo e o extraordinário poder da palavra sobre uma realidade de que nos sobra teimosamente uma vaga recordação de nunca ter existido. Tornaram-se amantes e partilharam desde esse dia a vida, a doença e um céu de demência e morte em inúmeras deslocações ao colérico anil da Provença. Não os incomodava o ridículo ou o medo – Proust pretendia, não reviver, mas criar um pinheiro sem nunca o ter visto e, à sua volta, pequenas raparigas em flor, uma família, mexericos, antigas questões de partilhas, uma estrada, uma vila, um século e um universo; Reynaldo Hahn queria para si a persistente ousadia das cigarras.
Tantos anos após, não somos nós que a eles regressamos com a dignidade de quem avança às arrecuas – são os pinheiros e as cigarras que, ressurrectos, precipitam a sombra dos seus vultos sobre tudo quanto aprendemos a pensar antes e depois “a fé numa qualquer beleza”. A natureza de um grave é cair.