Um dos grandes professores que tive, o Miguel Monjardino, ensinou-me a pensar as relações e as tensões entre os Estados através de um mapa. O raciocínio é simples: uma coisa são as palavras, as ameaças e as tensões entre inimigos; outra coisa é a sua real capacidade de concretização das palavras e das ameaças, muitas vezes mensurável pela ponderação das distâncias geográficas e do alcance dos equipamentos militares. Por exemplo, não havendo território amigo onde reabastecer, a autonomia de combustível de um F16 israelita permitiria ir e voltar caso pretendesse executar um ataque no Irão? Este tipo de teste de realidade deve servir sempre de ponto de partida das discussões. No fundo, avalia-se o que objectivamente é possível acontecer, já que não existe mais-valia em discutir o impossível.
Esta lição é importante, porque desencadeia uma metodologia de pensamento crítico que se adapta a várias circunstâncias e a qualquer área da governação: há uma diferença substantiva entre as intenções e aquilo que é realista, devendo o escrutínio das políticas públicas começar nessa avaliação. Ora, sob essa lente, veja-se o caso concreto da Educação, cuja equipa governativa tem repetidamente prometido mais autonomia para as escolas, no sentido de estas testarem soluções inovadoras em sala-de-aula, se ajustarem às necessidades dos alunos e os orientarem para a aquisição de competências-chave (tal como surge no documento estratégico do “Perfil do aluno para o século XXI”). Mas até que ponto estas peças encaixam no puzzle do sistema educativo? Não encaixam. A intenção política não passa no teste da realidade.
Porquê? As incompatibilidades são muitas e variadas. Três pequenos exemplos. Primeiro: às escolas pede-se que se adaptem às necessidades dos seus alunos, de modo a prevenir o insucesso escolar – mas se um director não pode escolher os seus professores, o que define o seu projecto educativo não são as carências educativas dos alunos mas as características dos recursos humanos que tem à disposição. Segundo: a organização do Ensino Básico está sustentada em três ciclos, que enquadram desde o currículo até à organização interna das escolas – mas como se pode dar autonomia às escolas sem, depois, se ficar às cegas, já que não se avalia de forma sistemática (com prova final, prova de aferição ou o que seja) o nível das aprendizagens dos alunos no final dos 1.º e 2.º ciclos do ensino básico? Terceiro: as escolas públicas vão ser incentivadas a diferenciarem-se umas das outras, gerando diversidade de oferta – mas se se quer escolas públicas diferentes, deixa de ser indiferente frequentar uma ou outra escola, pelo que se impõe mecanismos de escolha da escola para os pais na rede pública.
A lista poderia continuar. Mas nenhuma incompatibilidade chegaria aos calcanhares daquela que agora temos debaixo dos olhos, nestas semanas que antecedem os exames nacionais: todo o ensino secundário está orientado para o exame final. Assim que começam o 10.º ano, os alunos só querem saber o que sai no exame, os professores só ensinam o que sai no exame, os pais só perguntam pelo que sai nos exames. O que é perfeitamente compreensível: os exames nacionais são decisivos para o acesso ao ensino superior – a nota que um aluno tiver nesses exames faz a diferença entre ingressar ou não no curso que ambiciona.
Ora, o problema não é haver exame (que faz sentido), mas sim a sua dependência com o ensino superior (que não faz sentido). Porque, se é perfeitamente compreensível a atenção que todos dedicam aos exames, esta é igualmente contraproducente – todo o ensino secundário fica condicionado pelo exame, pela forma como este mede os conhecimentos, pelo tipo de questões que coloca, pelo conteúdos mais prováveis de testar. Não há margem para mais nada. Esqueçam-se, pois, as competências para o século XXI, as novas abordagens pedagógicas, as salas-de-aula inovadoras. Sim, até poderão existir no papel. Mas nenhum professor ou escola irá por aí enquanto o risco for tão elevado. A opção mais segura continuará a ser ensinar para o exame e pouco mais. É aí que estamos e é aí que ficaremos.
O discurso do governo para a Educação tem vários pontos negativos que, noutros momentos, apontei e critiquei. Mas também tem pontos positivos – está centrado na autonomia das escolas, na inovação pedagógica, na diversidade de oferta educativa, na aquisição de competências para o século XXI. O dilema é que, tal como o governo se propõe a introduzir estas reformas, os pontos positivos não encaixam – e, como tal, por mais que existam no domínio das intenções, não existirão na realidade. No fim, não passa de palavras, pois tudo esbarra aqui: se não se libertar o ensino secundário do acesso ao ensino superior, não haverá autonomia escolar que resista. Nem inovação pedagógica que alguém arrisque. E muito menos aquisição das ditas competências para o século XXI. A menos que o governo encare esta questão – o que parece pouco provável – andaremos sempre a discutir impossibilidades.