Soube-se esta semana que um jovem de 16 anos, que sofre de leucemia aguda, pode correr risco de vida em virtude da sua recusa em aceitar tratamento médico com recurso a transfusões de sangue. Sabe-se que o tratamento da leucemia é bastante agressivo ao organismo e faz com que o paciente fique inibido de produzir novas células sanguíneas, sendo necessário transfundir certos componentes principais do sangue, como as plaquetas. Estas são necessárias, visto serem as principais responsáveis pela coagulação e impedem que o paciente sofra hemorragias.

A quimioterapia pode tornar necessário também transfundir hemácias, também chamadas de glóbulos vermelhos ou eritrócitos. Visto que o corpo pode sofrer de efeitos colaterais da quimioterapia, como insuficiência renal e inflamação do corpo, e é necessário manter uma boa oxigenação do organismo, sendo isso apenas possível se o nível de glóbulos vermelhos estiver a um nível aceitável. Caso isso não aconteça, pode haver falência dos órgãos, resultando no seu óbito.

É então natural que para um médico e a sua equipa, tratar um paciente que se encontra em risco de vida mas que recusa um tratamento médico que pode ser a sua melhor hipótese de sobreviver, seja frustrante e até mesmo difícil de aceitar. A recusa das Testemunhas de Jeová em aceitarem transfusões de sangue é um dos exemplos mais polémicos e exemplares desse tipo de recusa.

Tendo sido Testemunha de Jeová por quase 40 anos de vida, e estando agora no papel de dissidente religioso, entendo perfeitamente os dois lados da questão.

Fui batizado como Testemunha de Jeová exactamente com a idade de 16 anos e tenho a plena convicção de que preferiria morrer leal à crença religiosa e àquilo que eu acreditava ser a vontade de Deus, do que aceitar sangue. Sem hesitar!

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Para uma Testemunha de Jeová, o sangue é encarado como sagrado, algo único e precioso. Uma dádiva de Deus e que apenas pertence a cada ser humano. Tal como uma impressão digital. Os membros são doutrinados praticamente desde os estudos bíblicos iniciais com as Testemunhas de Jeová de que a lealdade a Deus e à Sua vontade deve ser um modo de vida e que, mesmo perante as adversidades causadas por este mundo, é a forma como lidamos com elas de acordo com as normas divinas que garantirá ou não a passagem para o futuro paraíso terrestre após a guerra do Armagedão.

A ideia de que a nossa vida está constantemente a ser avaliada por Deus e que isso poderá resultar em salvação ou destruição eternas é algo bem presente na mente de uma Testemunha de Jeová. Por isso, quando um crente é colocado numa decisão de vida ou de morte, em que supostamente tem que violar uma lei de Deus – como no caso de aceitar sangue – ele irá preferir manter-se leal a Deus e preservar assim a esperança de voltar a viver no “Novo Mundo”.

As Testemunhas de Jeová acreditam que na morte a consciência cessa de existir e que pode ser comparada a um sono profundo. Assim, embora a morte cause pesar e tristeza pela perda de um ente querido, é de algum modo suplantada pela esperança da ressurreição, ensino central do cristianismo desde o seu princípio.

Por isso, não é de estranhar que um membro, seja ele jovem, adulto ou idoso, esteja disposto a morrer por uma crença que considera importante para manter uma boa relação com Deus e com isso garantir a vida eterna. Não admira também que pais Testemunhas de Jeová, que certamente amam os seus filhos e que sofrem a angústia da perda eminente destes, prefiram manter-se leais àquilo que acreditam ser uma lei divina, mas que poderá resultar numa perda “momentânea”. Afinal, a esperança destes é que voltarão a estar todos juntos no futuro paraíso terrestre.

Faço esta explicação para que se entenda a forma de pensar de uma Testemunha de Jeová. Longe de ser uma decisão irracional, como alguns possam pensar, é uma decisão bastante consciente e ponderada, embora eu próprio tenha vindo a concluir que se baseia em premissas erradas.

E porque digo isto? Conforme relato no meu livro biográfico “Apóstata! Porque abandonei as Testemunhas de Jeová”, após a minha esposa ficar grávida e termos tido uma conversa com o nosso obstetra, decidi enveredar por uma pesquisa pessoal e exaustiva acerca da questão do sangue e as Testemunhas de Jeová. Vim a perceber que até finais dos anos 40, as Testemunhas de Jeová, embora encarassem como algo negativo o consumo de sangue como alimento, ainda assim em nada se opunham a tratamentos médicos com recurso ao sangue. Inclusivamente, em publicações suas podem ser encontrados artigos que mencionavam as transfusões como algo positivo e elogiável!

Mas tudo mudou à medida que as passagens bíblicas que apresentam o consumo do sangue como alimento foram reinterpretadas, aplicando-se a qualquer utilização do sangue – em especial no tratamento médico por meio de transfusões. Na época, a organização religiosa expressava a ideia de que uma transfusão de sangue era similar a ingerir sangue como alimento e até acreditavam que uma transfusão de sangue de algum modo iria alimentar o corpo. Ainda hoje em dia, quando confrontadas com a questão do sangue e o porquê de não poderem aceitar transfusões, as Testemunhas de Jeová usam o argumento de que assim, como alguém pode ser alimentado pelas veias e não apenas pelo nariz ou boca, do mesmo modo a introdução do sangue pode ser feito tanto intravenosamente como pela boca (A Sentinela, 1 de Julho de 1951, p. 415; A Sentinela,15 de Março de 1962, p. 171).

É claro que esta ideia de alimentar o corpo por meio de transfusões não tem base científica e com o passar dos anos, os líderes da organização religiosa, mudaram o argumento, afirmando que é errado “sustentar a vida” por meio do uso de transfusões de sangue. O argumento de que uma transfusão de sangue alimenta o corpo caiu, mas a crença de que uma transfusão de sangue é uma forma errada aos olhos de Deus de manter alguém vivo persistiu.

É necessário mencionar também algo que vim a descobrir nas minhas pesquisas em publicações antigas da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, entidade jurídica nos EUA que dirige a obra mundial das Testemunhas de Jeová e que é comumente referida por estas como “a organização”: existe um histórico de ideias e opiniões anti-científicas por parte desta organização, entre os quais, a crença de que as vacinas eram “uma violação directa do pacto eterno que Deus fez com Noé após o Dilúvio” e que estas eram “demoníacas” (anos 20 a 40), passando pelo ensino durante os anos 60 a 80, de que os transplantes de órgãos eram equivalentes a canibalismo e uma forma de viver “às custas da carne de outro ser humano” (A Idade de Ouro de 4 de Fevereiro de 1931, p. 293; A Sentinela 1 de Junho de 1968, p. 349, 350).

Destes três ensinos que condenavam três tratamentos médicos, a saber: vacinação, transplantes de órgãos e transfusões de sangue, apenas este último se manteve debaixo de condenação até aos dias de hoje, embora com ajustes na doutrina, como irei explicar.

Atualmente, as Testemunhas de Jeová não são totalmente contra o uso do sangue na Medicina, como à primeira vista poderá parecer. Ao longo dos anos 90, e especialmente a partir do ano 2000, a organização religiosa que decide o que é aceitável ou não do ponto de vista médico com respeito ao uso do sangue, veio a permitir uma latitude cada vez maior de componentes ou fracções de sangue que uma Testemunha de Jeová pode ou não aceitar.

Assim, actualmente, uma Testemunha de Jeová pode aceitar quaisquer fracções de sangue derivadas dos chamados quatro componentes principais do sangue, conforme entendido pela organização religiosa por meio do seu Corpo Governante – o topo da cúpula hierárquica e onde reside o poder absoluto que comanda os destinos de mais de oito milhões de Testemunhas de Jeová em todo o mundo.

Deste modo, plasma, plaquetas, glóbulos vermelhos e brancos são encarados como sendo “inaceitáveis para os cristãos”. Todas as fracções derivadas destes componentes são matéria de consciência individual.

Foi precisamente esta divisão entre o mau e o bom uso do sangue, por assim dizer, que me levantou questionamentos quando era Testemunha de Jeová e ancião congregacional (equivalente a padre na Igreja Católica ou Pastor na Igreja Evangélica).

Partindo da premissa usada pela Organização de que o sangue é sagrado e não pode ser usado nem mesmo para salvar uma vida, como é possível conciliar isso com o uso de fracções sanguíneas? A Lei Mosaica dada aos israelitas e que as Testemunhas de Jeová usam como base para a sua proibição do consumo de sangue como alimento e tratamento médico diz, de modo claro:

“Se algum israelita ou algum estrangeiro que mora entre vocês, ao caçar, apanhar um animal selvagem ou uma ave que se pode comer, ele terá de derramar o sangue e cobri-lo com pó. Pois a vida de todo tipo de criatura é seu sangue, porque a vida está no sangue. Por isso eu disse aos israelitas: ‘Não comam o sangue de nenhuma criatura, porque a vida de todas as criaturas é seu sangue. Quem o comer será eliminado.’” – Levítico 17:13, 14 (Tradução do Novo Mundo (TNM) editada pela Sociedade Torre de Vigia)

As questões que ressoaram na minha mente à medida que passei a investigar este assunto, foram:

  • De onde provêem as fracções de sangue aceites pelas Testemunhas de Jeová com a aprovação da sua liderança?
  • Se uma Testemunha de Jeová não pode fazer transfusão autóloga, usando o seu próprio sangue retirado antes de uma intervenção cirúrgica, como pode usar uma máquina ‘cell saver’ que funciona como circulação extra-corpórea e que recebe o sangue do paciente e volta a transfundi-lo de volta ao corpo? Não é isso uma transfusão de sangue à mesma do próprio sangue?
  • Se as Testemunhas de Jeová podem usar 100% do sangue na sua forma fraccionada, como é que podem afirmar que se “abstêm de sangue”, conforme Actos 15:28, 29?
  • Porquê proibir os glóbulos vermelhos e ao mesmo tempo permitir o uso da hemoglobina, sendo que esta é o principal componente do glóbulo vermelho?
  • Porquê proibir os glóbulos brancos, quando se sabe que no colostro e leite materno são um dos principais componentes que fornecem imunidade ao bebé, sendo uma transferência natural criada por Deus?
  • Porque proibir o plasma, que na sua composição tem cerca de 95% de água e permitir todas as fracções do plasma em separado?

Estas e muitas outras questões bombardearam a minha mente à medida que descobria as incoerências desta interpretação doutrinal por parte dos líderes das Testemunhas de Jeová. Isso e outras descobertas e conclusões levaram-me a uma profunda crise de consciência religiosa.

Perceber que vidas estão sendo perdidas diariamente ao redor do mundo por causa de uma doutrina incoerente e difícil de entender do ponto de vista bíblico e científico, conduziu-me a uma rota de colisão com esta organização religiosa que descrevo em pormenor na minha biografia.

A vida deste jovem rapaz não está apenas na sua mão e dos seus pais. A sua vida ou morte depende também da interpretação religiosa que a organização religiosa faz da Bíblia e, em última instância, ela é culpada do sangue dos homens, mulheres, jovens e crianças que têm morrido ao longo de décadas, que segundo alguns cálculos já ceifou 50 mil vidas desde que a doutrina foi imposta no final dos anos 40. Comparem este número com os que morreram no maior suicídio colectivo em Jonestown!

O último aspecto importante ao avaliar esta situação, é a pressão a que uma Testemunha de Jeová está submetida por parte dos líderes quanto à sua decisão de aceitar ou não um componente sanguíneo que a Organização religiosa proíbe.

Com respeito a isso, coloco aqui um trecho do meu livro onde abordo este assunto:

“Uma Testemunha de Jeová que aceite uma transfusão de sangue total ou dos quatro componentes primários (segundo o conceito actual) estará a violar uma «lei sagrada», talvez a lei mais sagrada aos olhos das Testemunhas de Jeová. A punição dessa pessoa, caso seja considerada culpada e não demonstre arrependimento, será o ostracismo. A pessoa será considerada «dissociada», entendendo-se pelas suas acções que não mais deseja ser uma Testemunha de Jeová. Após isso, o indivíduo passará a ser evitado pela própria família e amigos Testemunhas de Jeová, que serão pressionados e mesmo admoestados a não ter contacto com o «pecador». Nem um cumprimento lhe poderá ser dirigido ao passarem por ele na rua.”

Tendo isto em mente, acredito que um médico e o tribunal terão que ter em consideração, que no caso de uma Testemunha de Jeová, a decisão de correr o risco de vida por recusar uma transfusão de sangue pode não ser apenas resultado da sua fé religiosa, mas da pressão de grupo e do medo em ser totalmente banido do convívio religioso e social com os seus irmãos e até mesmo familiares.

Na realidade, a Testemunha de Jeová acaba por ser colocada entre a espada e a parede: se recusar um tratamento médico com recurso a componentes sanguíneos proibidos pela religião pode perder a sua vida física, mas se aceitar o tratamento corre o risco de perder a sua vida social e até familiar devido ao ostracismo a que será votado.

Uma vez que uma Testemunha de Jeová é incentivada a criar laços sociais e familiares dentro do grupo, a mera ideia de ser-se banido do grupo é profundamente aterradora, associada à vergonha de, supostamente, ter violado a lei de Deus.

Por isso, também as Testemunhas de Jeová passam por profundos dilemas ao verem-se na situação em que este jovem e os seus pais se encontram. Infelizmente, este jovem não tem certamente a maturidade de um adulto  nem o conhecimento total deste assunto, assim como eu e muitos outras ex-Testemunhas de Jeová viemos a ter com o tempo.

Ele apenas sabe o que a Organização e os seus pais lhe transmitiram de modo intensivo e rotineiro, mês após mês, ano após ano. Por isso, é natural que ele nunca tenha ponderado estas questões que apresentei de modo resumido e não tenha tido tempo para perceber as graves incoerências da posição actual dos líderes da organização religiosa, o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová.

Para eles, a morte de qualquer jovem, aliás, de qualquer pessoa Testemunha de Jeová é usada como bandeira e exemplo de verdadeira lealdade a Deus e às suas leis, como tem sido disso exemplo discursos feitos por membros do Corpo Governante em congressos e discursos, onde elogiam essas pessoas e as apresentam como modelos a seguir. São “mártires” ou “testemunhas” (mártys), no verdadeiro sentido da palavra grega original.

O sangue ou vida de tais homens, mulheres e crianças são apresentados no altar da Torre de Vigia como ofertas sacrificiais a Jeová, o mesmo Deus que disse o seguinte dos israelitas que ofereciam os seus filhos como sacrifícios humanos ao deus Moloque: “Eu não lhes havia ordenado fazer isso. Jamais havia ocorrido no meu coração pedir que eles fizessem tal coisa detestável…” – Jeremias 32:35 (TNM)