Por vezes, o destino traz-nos coincidências tremendas. Santana Lopes anunciou a sua candidatura à liderança do PSD na passada terça-feira. No dia seguinte, o Ministério Público fez a acusação contra José Sócrates. Regressemos a 2005, quando o regime político, incluindo muitos no PSD, escolheu Sócrates contra Santana. Depois de Sócrates vencer as eleições internas no PS, começou uma campanha fortíssima para desqualificar Santana Lopes, o que não desculpa os erros cometidos pelo então PM. Com Santana e a coligação PSD/CDS desfeitos na praça pública, estavam reunidas as condições para Sócrates e o PS chegarem ao poder com maioria absoluta. A história do nosso país teria provavelmente corrido bem melhor se o governo de Santana tivesse chegado ao fim da legislatura e se Sócrates nunca tivesse chegado a São Bento.
Regressando a 2017, a acusação a Sócrates é um dos acontecimentos mais graves da história da democracia portuguesa. Bem sei que o antigo PM não foi condenado, mas estamos perante muito mais do que uma questão jurídica. Há aqui um enorme problema político. O PS está a esconder-se atrás da separação de poderes para não discutir as questões políticas, mas não precisamos de fazer a vontade aos socialistas. O primeiro problema político diz respeito à falta de escrutínio em relação a um candidato a PM. Ninguém no PS sabia ou desconfiava do carácter de Sócrates. Já em 2005 ouviam-se rumores sobre a apetência de Sócrates pelo lucro fácil. Hoje quase ninguém em Portugal estará seguro de que Sócrates se tenha comportado com lisura e seriedade enquanto ministro do Ambiente.
Se é certo que devemos tratar a Operação Marquês contra Sócrates como um caso isolado, a verdade é que a democracia portuguesa é um regime de partidos. Sócrates não chegou ao poder nem o exerceu sozinho. Foi eleito PM como líder do PS. Nenhum dirigente do PS sente um pouco mais do que um mero “incómodo” com o que se passa com o antigo PM? Estou seguro de que muitos se sentem embaraçados e preocupados, mas nunca o dirão em público. O que mostra desde logo que receiam que a acusação contra Sócrates afecte o partido. Os factos atribuídos a Sócrates dizem respeito aos anos em que desempenhou funções como PM. Não foi antes nem depois.
Há ainda um segundo problema que é apenas politico. Independentemente do julgamento dos tribunais, a acusação revela um politico que não colocava o interesse nacional antes dos seus interesses particulares. O que é inaceitável sobretudo num chefe de governo. Como PM, Sócrates demonstrou sempre muito mais interesse em alianças pessoais com empresários e com banqueiros do que em preocupar-se com o bem do país. Enquanto Sócrates ocupava os seus dias com estratégias de poder ilegítimas e, segundo o Ministério Público, ilegais, Portugal caminhava para a falência. Foi durante estes anos que os portugueses começaram a perder empregos e a sentirem as suas pensões reduzidas. Mais uma vez, alguém acha que Sócrates era a pessoa certa para chefiar o governo durante a maior crise financeira na Europa desde o pós-guerra? Alguém consegue negar que a austeridade tenha sido o resultado do modo como o governo de Sócrates exerceu o poder? Os portuguese pagaram um preço demasiado elevado pelos anos que Sócrates passou em São Bento. Se o Ministério Público está certo, enquanto Sócrates enriqueceu, os portugueses ficaram mais pobres.
Há por fim um problema que colocou em causa os fundamentos da nossa democracia. Sócrates ameaçou, como mais ninguém o fez em Portugal desde 1974, a independência do poder judicial. O PS defende agora com muito zelo a autonomia do poder judicial, que pena não o ter feito da mesma maneira entre 2006 e 2011. O governo de Sócrates controlava a Procuradoria Geral da República e o Supremo Tribunal de Justiça. Não me lembro de uma ameaça tão grande à democracia desde a queda do Estado Novo. O comportamento de António Costa em relação à justiça mostra aliás a diferença entre um líder com cultura democrática e um político, Sócrates, que ambicionava apenas usar o poder de um modo ilimitado. Depois da maioria absoluta de 2005, Sócrates quis controlar o dinheiro (bancos), a informação (comunicação social) e o poder judicial. E tudo fez para o conseguir.
Em 2005, Santana foi afastado de São Bento para Sócrates e o PS chegarem ao poder. Uma boa parte do PSD contribuiu para o afastamento de Santana e muitos deles voltam agora a opor-se ao seu regresso à liderança do partido. O nosso país pagou um preço muito elevado. Um político não deve cair na tentação de ajustar contas com o passado mesmo que tenha alguma razão. Será melhor para Santana reconhecer os erros que cometeu e mostrar que aprendeu as lições em vez de regressar a 2005. Mas a história não deixa de ser irónica. Depois de se perceber melhor a terrível herança de Sócrates, talvez Santana mereça uma segunda oportunidade. A decisão compete aos militantes do PSD.
PS: A partir de 2005, quando muitos de nós que agora criticam a geringonça atacámos o governo de Sócrates, antecipando o desastre, acusaram-nos de “radicais”, “neo-liberais” e na altura também de “neo-cons”, lembram-se? Agora os nossos adversários voltam a chamar-nos de “neo-liberais” (sempre) e, a propósito da era Trump, de “altright”. Fica aqui um aviso. Devem ser um pouco mais elaborados e sofisticados para contrariarem quem já viu a história dar-lhe razão. E não foi há muito tempo. Foi em 2011.