A última vez que consultei a Constituição portuguesa, notei que ela define Portugal como uma democracia representativa. Não é uma democracia directa. Os portugueses elegem deputados, que representam partidos políticos e o governo é legitimado pelo parlamento (como sabe muito bem a geringonça). A tentativa do PS de separar o partido dos actos Sócrates como PM constitui uma falta de respeito flagrante pelo espírito da Constituição.

Sócrates foi PM porque era líder do PS, não chegou a São Bento como o cidadão José Sócrates. Os governos que chefiou, um deles com maioria absoluta, foram executivos socialistas. E quando chegou à liderança do partido, não era um desconhecido. Era deputado desde os anos de 1980, e tinha sido ministro do governo de Guterres. Toda a gente no PS o conhecia. Nenhum PM do PS, os antigos e o actual, se comportou como Sócrates. Mas a verdade é que se não fosse o PS, Sócrates não teria feito o que agora “envergonha” os seus antigos camaradas, e o que, nas palavras do PM, “desonra a nossa democracia.” Numa democracia representativa, esse é o ponto central e não podemos permitir que o PS fuja das suas responsabilidades, colocando as culpas em Sócrates e tratando o partido como uma vítima. Nas ditaduras é que se resolvem problemas de abuso de poder e de corrupção culpando o líder. Nas democracias representativas, os problemas não começam nem acabam no líder.

Em 2004, ninguém no PS conhecia o percurso de Sócrates? Ninguém no partido tinha ouvido falar do caso Freeport? As dúvidas e as suspeitas não deveriam ter sido suficientes para alguém ter dito ‘o Sócrates não pode ser líder do partido’? Nada disso aconteceu. Uma grande maioria de militantes do PS votou em Sócrates, incluindo muitos dos “envergonhados” de hoje, incluindo António Costa. O governo de Santana Lopes estava sob fiscalização apertada por parte do camarada Jorge Sampaio e Sócrates tinha boas sondagens entre os portugueses. A possibilidade de chegar ao poder rapidamente foi muito mais forte do que qualquer dúvida ou suspeita em relação a Sócrates. Ou seja, o apelo do poder fez da maioria dos socialistas cúmplices de Sócrates, desde o primeiro dia.

O modo como Sócrates lidou com as notícias sobre a sua “licenciatura”, com a liberdade de imprensa e com as investigações dos jornais nunca incomodou os “envergonhados” de hoje? Eles, que estão sempre preparados para se colocarem ao lado da liberdade de opinião e contra os atropelos contra a imprensa. Os rumores sobre a proximidade entre o governo de Sócrates e o grupo Espírito Santo, a nomeação de Armando Vara para o Conselho de Administração da CGD e depois a tomada do poder no BCP nunca fez os “envergonhados” de hoje sentirem constrangimentos em relação à aliança entre um governo socialista e a banca? Eles que nunca perdem uma oportunidade para atacar os “abusos” do sistema financeiro. O modo como o então PGR, Pinto Monteiro, e o então Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, estavam subordinados ao poder do PM Sócrates nunca perturbou os “envergonhados” de hoje? Eles que estão sempre preparados para defender o estado de direito e a independência da justiça.

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Numa Lisboa onde se sabe tudo, onde todos dizem tudo em privado, uma cidade onde não há segredos sobre as vidas dos políticos, nenhum dos envergonhados desconfiou sobre os hábitos de vida de Sócrates, nem se incomodaram com os ataques à liberdade de imprensa, os atropelos ao estado de direito e à partilha de negócios com a banca. Nada disto foi capaz de criar uma única dissidência no PS, uma única voz discordante. Pelo contrário, os “envergonhados” de hoje não pararam de atacar, e com uma violência nada própria de uma democracia, todos aqueles que investigaram Sócrates e que o criticaram e desmascararam. Fizeram esse serviço ao chefe, enquanto beneficiaram do poder que ele conquistou enquanto líder do partido.

Em 2011, o segundo governo de Sócrates chegou ao fim, deixando Portugal falido e obrigando o país a seguir um duro e penoso programa de austeridade. Mas mesmo assim os “envergonhados” de hoje nunca fizeram qualquer relação entre o comportamento do governo de Sócrates e a bancarrota do país. Pelo contrário, atacaram e culparam o governo “neoliberal” de Passos Coelho. Num momento desesperado, quando via fugir o seu poder, António José Seguro, ainda avisou o partido e o país sobre a incestuosa relação entre poder e negócios no PS, mas mais uma vez os “envergonhados” de hoje só pensavam num regresso rápido ao poder, desta vez sob a liderança de António Costa, o melhor colocado nas sondagens. Já como PM, Costa ainda criticou o governo de Passos Coelho por não ter “salvo” o grupo Espiríto Santo, afirmando que se fosse um governo socialista o grupo de Ricardo Salgado não teria caído.

Catorze anos depois de Sócrates ter chegado à liderança do PS, e das primeiras suspeitas sobre o seu comportamento no Ministério do Ambiente, sete anos depois do desastre do governo socialista em 2011, e três anos depois da prisão de Sócrates, os dirigentes socialistas começaram finalmente a sentir “vergonha” pelo legado de Sócrates. Enganam-se, contudo, num ponto central. O legado não é de Sócrates, é do PS. Foram eles, os “envergonhados” do PS, que elegerem Sócrates líder do partido, gritaram pelo seu nome nos Congressos, fizeram campanhas com ele por todo o país, estiveram com ele nos governos e beneficiaram do poder. Os “envergonhados” de hoje foram cúmplices de Sócrates durante catorze anos.

Mas a “vergonha” durou pouco tempo. Na semana passada, o PM ousou acusar os deputados do PSD de “deslealdade parlamentar” por fazerem perguntas sobre o que ele próprio considerou uma “desonra para a democracia”. Absolutamente extraordinário. Mas os socialistas vão mais longe e querem que Costa “mate o assunto no próximo Congresso do partido.” Quem eles julgam que são? Ainda acreditam que são eles a decidir quando se deve discutir um assunto e quando já não se pode fazê-lo?Estão enganados. Felizmente, vivemos numa democracia pluralista onde, apesar do PS de Sócrates, existe liberdade de opinião. A oposição e muitos órgãos de informação não deixarão morrer o assunto e continuarão a investigar o que fez o governo socialista de Sócrates e a fiscalizar o que fazem hoje os “envergonhados”. O que aconteceu em Portugal entre 2005 e 2011 foi demasiado grave para nos calarmos. A defesa da democracia portuguesa proíbe o silêncio. Se alguém, na oposição se calar ou alinhar com a estratégia de Costa, tornar-se-á cúmplice dos maiores crimes políticos e económicos que se cometeram em Portugal desde o 25 de Abril.

Só mais um ponto. Até à onda da “vergonha” que assolou o PS, Sócrates precisava do partido para manter uma possibilidade de se safar. Agora é o PS que precisa de Sócrates, e do seu silêncio, para que a estratégia de Costa tenha sucesso.