Oficialmente o Presidente da República está a fazer contas de somar e diminuir para ver se lhe vale ou não a pena enviar para o Tribunal Constitucional a legislação aprovada no parlamento sobre a eutanásia”

Mas enquanto o Presidente se dedica às regras de três simples para determinar se desencadeia ou não uma crise (no universo lúdico de Marcelo a presidência só conhece dois modos: o festivo em que o Presidente anda aos pulos com o Governo e o dramático em que provocará uma crise que leve António Costa a mudar de governo), os deputados prosseguem na sua marcha destravada para a criação do homem novo: “Portugal será um dos primeiros países a permitir inseminação post mortem” — soube-se esta semana. Ou seja após ter aprovado a eutanásia, o parlamento resolveu legislar sobre o “projecto comum de parentalidade” que as mulheres viúvas poderão manter com os maridos mortos através da inseminação do esperma congelado. Não fosse o assunto tão sério e dir-se-ia que essas mulheres precisam sim de ajuda para fazer o luto e não para engravidar de quem já morreu.

Toda esta realidade virtual do “direito a morrer”, das mudanças de género, das barrigas de aluguer ou agora do projecto comum de parentalidade com um morto (durante quanto anos estimarão os senhores deputados que se consegue manter um projecto comum de parentalidade com um morto?) nos chega embrulhada no papel festivo do “Portugal na dianteira”, do “direito a”, da “correcção da injustiça”.

Nada se pergunta. E tanto há a perguntar. Por exemplo, no caso de Portugal aprovar a eutanásia a morte por eutanásia vai ser registada como morte natural como acontece em Espanha? E como se pode saber quantas pessoas estão a morrer por eutanásia se esta for registada como morte natural? A rampa deslizante também passa por aqui.

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O mais perturbante é que não só os maiores atropelos são aceites como se de um fatalismo se tratasse como há quase um incómodo quando alguém manifesta a sua discordância perante este tipo de legislação, sobretudo se não o fizer ao abrigo da excepção católica.

Na prática age-se como se estivesse inscrito no ar do tempo que somos obrigados a aceitar tudo isto como se se tratasse de uma evolução pré-determinada, admitindo-se aos católicos que demorem um pouco mais a chegar lá. Este jacobinismo impôs-se pela sua agressividade mas não só. Para este estado de coisas concorreu decisivamente o facto de quem se opunha a esta agenda ter medo de ficar mal na fotografia e optado por adiar para um momento perfeito o afirmar das suas convicções. Enquanto o momento perfeito não acontece vão-se tornando cada vez mais irrelevantes.

É essa inevitabilidade ou o espanto por uma vez ela não ter sido pressurosamente aceite que encontramos nas declarações do presidente da autarquia de Lisboa, Fernando Medina, sobre a retirada dos brasões florais da Praça do Império. Argumenta Fernando Medina que em Belém “não há nenhuma retirada de nenhum brasão” porque as flores já não estão lá há muito tempo. Ou seja Fernando Medina recorre ao desleixo da autarquia que dirige para justificar a mudança nos jardins de Belém. O sentimento de impunidade de Fernando Medina é tal que nem sequer concebe que se lhe pergunte: o desleixo nos jardins de Belém foi intencional? Visou que os brasões se degradassem de tal modo que a sua recuperação fosse apresentada como impossível?

O que está a acontecer com os brasões do jardim em frente as Jerónimos é a mais recente manifestação da táctica de primeiro deixar degradar para em seguida apresentar o desaparecimento como um facto consumado, seguida pela esquerda em relação aos espaços que considera serem memória do Estado Novo. Naquela zona de Lisboa a mesma táctica já foi utilizada com particular sucesso no caso do Museu de Arte Popular (MAP).

Encerrado logo em 1974, o MAP reabriu nos anos 80. Para arrelia do progressismo, os visitantes acorriam em massa para ver os arados, cabanas de pastores, barros, linhos, bonecos de Estremoz, as estranhas figuras saídas das mãos de Rosa Ramalho, cestos, carros chorriões do Alentejo…  que associavam à sua vida e à dos seus pais e avós e não ao Estado Novo. Mas esta gente que se pudesse manteria Salazar empalhado em Belém para se isentar de governar e manter-se no poder através do anti-salazarismo como dedicação exclusiva, só via salazares e salazarismo dos teares às almotolias e dos púcaros às almofadas de linho.

Até que em 1999 o Museu de Arte Popular encerra outra vez. Desta vez por causa da degradação do edifício. Gastaram-se 3,5 milhões de euros a recuperá-lo. Muitos terão acreditado que o MAP reabriria de novo e melhorado. Mas não foi isso que aconteceu: em 2006, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, anunciou o fim do Museu de Arte Popular naquele linguarejar triunfal que caracterizava o discurso dos governos de Sócrates: “A vida dos museus não é eterna. Eles nascem, vivem e morrem. Não devemos estar presos a uma atitude conservadora. É preciso fazer opções quando se faz política cultural. Um museu da Língua e dos Descobrimentos é mais aberto e mais rentável.”

Os jornais davam como certo que o Museu da Língua e dos Descobrimentos ia estar a funcionar em 2008 nas antigas instalações do Museu de Arte Popular. Como se sabe o Museu da Língua e dos Descobrimentos nunca foi aberto. Aliás neste momento a parte dos Descobrimentos também já foi censurada e passou a Descobertas, em seguida a Expansão, posteriormente a Interculturalidade de Origem Portuguesa e a última vez que soube dela ia em Viagem.

A única parte concretizada do anunciado Museu da Língua e dos Descobrimentos foi tão só e exclusivamente o encerramento do Museu de Arte Popular. Entretanto, o acervo, o arquivo e a biblioteca do Museu de Arte Popular foram transferidos para as reservas do Museu de Etnologia. Oficialmente, a título provisório. Convém esclarecer que e ao contrário do que se possa supor ao ler as notícias que se fizeram sobre esta transferência, o acervo do Museu de Arte Popular não está exposto no Museu Nacional de Etnologia. Está sim guardado. E não está guardado de modo a ser mostrado, mas sim preservado. Portanto, as visitas são teoricamente possíveis mas na prática as limitações às visitas são inúmeras e quando acontecem são devidamente acompanhadas de umas prelecções  sobre os malefícios do Estado Novo.

Percebe-se portanto o espanto de Fernando Medina perante a reacção que a retirada dos brasões da Praça do Império está a gerar: esta táctica que tantos e tão bons resultados tem dado irá falhar desta vez? Não pode ser!

PS. Depois de se desculpar com o Natal, o primeiro-ministro desculpa-se agora com a falta de “consenso científico” em torno da estratégia a seguir no combate ao Covid. António Costa tem uma visão muito limitada do que é a ciência mas tem uma visão muito apurada sobre fuga às responsabilidades.