Há temas no debate público que mergulham no que é mais íntimo e que redefinem as fronteiras da vida e da morte (como o aborto e a eutanásia). Discuti-los é forçosamente difícil, obriga-nos a estabelecer linhas vermelhas ou a hierarquizar direitos fundamentais que possam estar em conflito — a liberdade, a preservação da vida, a igualdade de oportunidades, a saúde pública. Não há preto e branco, há vários tons de cinzento entre considerações éticas, filosóficas, científicas e políticas. E, precisamente por isso, a discussão requer um exercício de tolerância face a quem pensa de forma diferente da nossa. Problema: nos dias actuais, nada disso existe. Não há dúvidas, só certezas; não há tolerância, apenas radicalismo persecutório; não se respeita a ciência, aplaude-se o dogmatismo; não há diálogo, somente gritaria; não há uma noção de comunidade, mas sim uma fragmentação social em núcleos de conflito permanente. Ora, uma sociedade livre e aberta, quando fracturada, dificilmente consegue lidar com dilemas de elevada complexidade, sob risco de aprofundar as fraturas sociais existentes.
É precisamente a esse espectáculo que estamos a assistir. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, que revogou Roe v. Wade e o aborto como direito constitucional, não foi juridicamente surpreendente. Afinal, até uma defensora do direito constitucional ao aborto como Ruth Bader Ginsburg reconheceu, há muitos anos, a debilidade de Roe v. Wade (que se sustentou fragilmente no princípio da privacidade). A decisão também não foi politicamente surpreendente, sabendo-se que o Supremo Tribunal de Justiça tinha maioria de nomeados pelo Partido Republicano — e vários estudos mostram como Republicanos e Democratas estão cada vez mais alinhados com as posições internas dos seus partidos e afastados entre si. No fundo, esta era uma situação que, sabia-se, um dia explodiria — e com a qual as instituições democráticas americanas teriam de lidar.
O drama começa aí: polarizada como está hoje a sociedade, a democracia americana não parece capaz de assumir essa responsabilidade. Há um importante debate a travar sobre o aborto e os direitos das mulheres, em busca de um equilíbrio político e legislativo que não deixe mulheres desprotegidas, mas que enquadre devidamente esse direito. Uma possibilidade: poderiam os partidos debater e trabalhar num equilíbrio político que reconhecesse o direito constitucional ao aborto, mas que fixasse limites temporais máximos? Actualmente, há Estados nos EUA que legalizaram o aborto (independentemente dos motivos) até qualquer momento prévio ao nascimento (~40 semanas de gravidez) — para comparação, em Portugal, a legislação fixou o limite de 10 semanas de gravidez.
Nos EUA, ninguém debate — só há raiva ou êxtase. À esquerda e à direita, impera o maniqueísmo que retrata os adversários como porta-vozes do mal. Ocasio-Cortez, dos Democratas, critica o Supremo Tribunal e define a criminalização do aborto como “um crime contra a humanidade”, apelando a uma batalha geracional nas ruas. Muitos outros da esquerda americana estão sucessivamente a questionar a legitimidade das instituições democráticas, a começar pelo Colégio Eleitoral. E, entre os republicanos, o desnorte e a influência nociva de Donald Trump abriram o partido às alas mais extremistas da direita, contraditoriamente “pró-vida” e “pró-armas”. Não há conversa possível — o fosso emocional entre os dois lados está demasiado profundo. E, neste caso, quem sofre com isso são milhões de mulheres.
Seria uma ilusão acreditar-se que estas fraturas sociais são um exclusivo americano. À nossa escala, também as há em Portugal, mobilizadas por partidos ou movimentos sociais que navegam nos identitarismos e nos populismos. A título de exemplo, só nos últimos dias, tivemos dois episódios que espelham a intolerância no ar do tempo. Viu-se quando membros da Iniciativa Liberal foram ostracizados por organizadores de marchas “pride”. E viu-se quando a opinião de um gestor acordou a cultura de cancelamento e levou a bolha das redes sociais a montar uma campanha contra a sua empresa. A política e a luta por direitos civis estão cada vez mais alicerçadas em emoções, e por isso cada vez mais intolerantes, viscerais e alheias ao diálogo ou aos consensos. Nos EUA ou em Portugal. Quando a cabeça não tem juízo, a democracia é que paga.