Seis amigos estão a ver pela televisão um jogo de futebol em casa de um deles quando, subitamente, alguém lhes bate à porta — era a polícia, que veio dispersar o grupo, alertada para uma “festa ilegal” por um dos vizinhos. Um professor universitário dá aula com transmissão online, numa sala-de-aula ampla e a grande distância dos poucos alunos presentes, tirando por momentos a máscara — e, passado algum tempo, a polícia interrompe a aula para o multar, tendo esta sido alertada do gesto por denúncia anónima. Três jovens encontram-se para conversar e beber uma cerveja, depois de jantar, numa praceta lisboeta — e rapidamente aparece a polícia para os dali expulsar, após queixa de um transeunte que os avistou.

Há quem só veja nestes episódios recentes o zelo de impor o cumprimento rigoroso das regras sanitárias. Mas essa é apenas a ponta do icebergue, até porque em nenhum destes casos a saúde pública esteve realmente em risco (um ajuntamento de cinco pessoas é possível, mas seis amigos juntos é motivo para chamar a polícia?). Nas entrelinhas de cada episódio emerge um padrão muitíssimo mais inquietante: a emergência da delação, a proliferação de denúncias anónimas, a instauração da vigilância social e o enfraquecimento da comunidade por via da desconfiança partilhada entre concidadãos. Com a pandemia, para além de restrições severas (mas legais) à nossa liberdade, nasceram bufos em todo o lado: estejamos em casa, no local de trabalho ou num espaço de lazer, ficámos sob o olhar vigilante de cidadãos disponíveis para denunciar qualquer infracção às autoridades.

A proliferação de delatores e bufos assinala uma ameaça latente à nossa vida democrática. Primeiro, lembra-nos que o tecido social com que se cose uma sociedade democrática é muito mais frágil do que gostaríamos de imaginar. E, repare-se, o ponto não é estabelecer paralelismos históricos hiperbólicos com períodos negros do nosso passado. O ponto é constatar que as sociedades livres e democráticas só prosperam quando existe solidariedade entre os cidadãos e confiança entre as pessoas, que se reconhecem entre si como membros de uma mesma comunidade. E isso é absolutamente incompatível quando se receia que um vizinho ligue às autoridades para estas nos repreenderem — o que, não por acaso, é prática instituída em todos os regimes inimigos da liberdade.

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