1 Em Abril, com um mês de evolução da pandemia, escrevi aqui no Observador: “É verdade que nos temos concentrado, e bem, na necessidade de conter a pandemia e de evitar a rotura dos serviços de saúde, já de si depauperados em recursos humanos e meios. Mas a realidade de sofrimento e morte associados vai para além disso, impõe outras questões, igualmente relevantes em matéria de humanização de cuidados de saúde, de ponderação ética e de justiça, em matéria de planeamento e visão a médio-longo prazo”.
Passados seis meses, que podemos, em síntese, comentar? Lamentavelmente, são evidentes graves lacunas, quer em termos de planeamento e coordenação de entidades, de liderança, de comunicação institucional, quer de prestação de cuidados assistenciais, de acessibilidade e humanização de cuidados de saúde, no garantir, afinal, que efectivamente ninguém fosse deixado para trás.
Escrevo no dia em que batemos recordes na pandemia Covid-19 em Portugal, quer de número de novos casos por dia (7497), quer de mortes diárias (59), num total de quase 2700 óbitos. Esta segunda vaga, expectável mas não devidamente preparada nos serviços de saúde, e que veio afinal mais cedo do que o previsto, rapidamente inundou os serviços públicos, enormemente sobrecarregados com níveis imprecedentes de utilização (seja em internamento, seja em UCI). Com uma agravante: os profissionais de saúde, que têm sido incansáveis e não abandonam os seus doentes, estão exaustos, revoltados com a falta de apoios efectivos e as más condições de trabalho.
Em muitos lares e equipamentos sociais, está à vista o elevado número de surtos e de pessoas infectadas – idosos e profissionais -, a falta de apoios condignos por parte do Estado e recursos adequados para garantir a qualidade de vida, devida aos mais frágeis.
Com esta vaga tão significativa de doentes Covid, o Ministério da Saúde dá hoje também indicações para suspender novamente a actividade não urgente nos hospitais do SNS, porque isso, e cito, “representa um balão de oxigénio para as equipas e instituições”, claramente em rotura. E, então, que respostas para os doentes não urgentes?
2 Neste contexto de excesso crescente de doentes Covid-19 no sistema, com o encerramento da actividade não urgente nos primeiros meses de pandemia e agora também, olhemos então com foco adequado para a realidade da Saúde no país, para a vida dos outros doentes, que não os atingidos directamente pela Covid.
Sabemos que quase um milhão de consultas foram canceladas, cerca de 100 mil cirurgias foram adiadas, milhares de exames complementares não foram efectuados. As listas de espera para procedimentos, cirurgias e consultas aumentaram para níveis tão elevados que, como bem alerta o Tribunal de Contas, muito provavelmente, o SNS não terá capacidade de resposta atempada para cada uma dessas pessoas que viu a resolução da sua situação de doença diferida para sabe-se lá quando.
Poderemos rapidamente inferir quantos diagnósticos de cancro não se realizaram em tempo oportuno para serem alvo de tratamentos atempados, quantas pessoas com doenças crónicas descompensaram, viram o seu estado agravado e sofreram por isso.
De acordo com o Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública, uma entidade credível que analisou os óbitos entre 16 de março e 30 de setembro, registou-se em Portugal um excesso de mortalidade de 12% (mais 7529 óbitos do que aqueles que seriam de esperar, com base na mortalidade média registada nos últimos cinco anos). Do acréscimo de mortes (7529), que atingiu sobretudo os mais idosos, 6072 foram por causas naturais e é de salientar que 4101 mortes (67,5% desse excesso) não foram causadas pela Covid-19. Podemos dizer com segurança, à luz desse trabalho, que apenas um em cada quatro desses óbitos foi devido à Covid-19. Os restantes três não se deveram a condições climatéricas, mas a explicação mais plausível é de que isso se deva a menor oferta e a falta de acesso a cuidados de saúde.
Seis meses volvidos, seis meses de oportunidades perdidas, estão à vista para milhares de cidadãos portugueses as graves consequências da impreparação e das deficiências dos serviços de saúde, que não conseguiram fazer frente às suas habituais necessidades assistenciais. Que dizer da redução de profissionais nas já insuficientes equipas de Cuidados Paliativos, da escassez de meios na Saúde Pública e nos Cuidados de Saúde Primários?
Escrevi aqui, em Abril: “A realidade da morte dos milhares de portadores de doenças crónicas não Covid tem sido mais ocultada e menos abordada nos meios de comunicação.” Lamento muito, face ao que antes evidenciei, ter hoje que voltar a sublinhar que as questões da sobrevivência não justificam, em nosso entender, maior atenção do que as que dizem respeito ao alívio do sofrimento, à Qualidade de Vida e Dignidade no final da mesma. Este segundo grupo de pessoas – os doentes não Covid – tem dimensões bem superiores ao primeiro e não pode ser abandonado. Esta é, seguramente, uma segunda pandemia de que se opta por não falar ou falar pouco, e que se está paulatinamente a instalar debaixo dos nossos olhos, talvez de uma forma menos aparatosa mas igualmente grave. Convirá ainda lembrar, que não sabemos quando terminará este enquadramento de excepcionalidade e, como tal, é expectável que este seja um grupo em perigoso crescimento.
E sim, é muito grave que o nosso Estado esteja a falhar aos milhares de doentes crónicos, aos idosos, aos mais vulneráveis, aos profissionais de saúde.
3 Num sistema de saúde moderno, desejavelmente de base alargada, que deve integrar o sector público, o social e o privado, com a devida supervisão e coordenação do Estado, as questões de cegueira ideológica não podem, nem devem, constituir justificação para prejudicar a saúde de milhares de portugueses e não se recorrer a todos os serviços de saúde disponíveis que possam minorar este grave panorama. Como compreender esta opção por parte dos nossos governantes? Como compreender que não se ouça o alerta de entidades e personalidades conhecedoras da realidade? Quem se irá responsabilizar então pela falta de respostas, pelo sofrimento desnecessário, pelos diagnósticos tardios, pelas mortes acrescidas, pelo abandono de doentes, pela perda de Qualidade de Vida e Dignidade de milhares de portugueses?
Somos um país de brandos costumes, diz-se, mas não nos podemos transformar num país de gente amorfa e acrítica, que vive anestesiada pelos “Big Brother’s” desta vida, pela espectacularidade vazia do superficial, do éfemero, do irracional, e deixa para trás questões de fundo e de valores, até de razoabilidade.
É neste contexto de duas pandemias que vamos continuar passivamente a não exigir respostas? É neste contexto que vamos deixar já em Dezembro os nossos parlamentares e a hierarquia do Estado dar prioridade à viabilização da execução da morte a pedido, supostamente apenas para os tão propagados casos excepcionais, no mesmo SNS que falha aos milhares que querem viver e precisam de ser cuidados? Um mundo ao contrário. Moderno? Não devemos nem podemos iludir prioridades.
Escrevi em Abril, também aqui: “Precisamos inverter esta realidade, precisamos de fazer as escolhas certas e, de uma vez por todas, incluir os idosos, os que têm doenças graves e crónicas, os que estão a morrer, nas políticas de saúde.” Hoje repito-o, em tom mais grave e apreensivo. É preciso fazer diferente, mas vai faltando o tempo.