Não costumo escrever sobre temas internacionais mas a globalização é, cada vez menos, uma expressão retórica. Com efeito, uma tragédia como a do voo MH17 que, segundo toda a probabilidade, foi abatido pelos separatistas ucranianos lançados pela Rússia contra a gradual penetração dos interesses europeus e norte-americanos na Ucrânia, uma selvajaria como esta, dizia eu, ilustra a forma desapiedada como, por detrás da globalização económica, se esconde hoje uma nova guerra fria.

Para além do contexto em que surgiu a guerra civil na Ucrânia, sob o assumido impulso da Rússia, foi há vinte cinco anos atrás, com a queda do Muro de Berlim, que a guerra e a redesenho das fronteiras voltaram ao espaço europeu desde o fim da segunda guerra mundial. Não por acaso, foi nos países do antigo império soviético que a violência irrompeu de novo na Europa, por vezes com a mais inaudita das violências, como sucedeu nesse produto da partilha territorial decidida na Conferência de Ialta (1945) que era a antiga Jugoslávia. Dessas novas guerras balcânicas e pós-soviéticas, surgiram ou ressurgiram do sangue vertido mais de uma dezena de países, quase todos eles procurando e muitos deles obtendo já a guarida na União Europeia, estendendo-se da fronteira da antiga União Soviética até à beira do Mediterrâneo, para quem não desdenhe olhar o mapa da globalização!

E ainda há quem esqueça, no meio da actual crise financeira, essa função primordial da UE que era – e vê-se que continua a ser – o restabelecimento da paz no território do nosso continente. E também ainda há quem se admire de os eleitorados, mesmo descontentes, aceitarem pagar um preço efectivo por essa paz. Sobretudo quando a guerra surge de novo à nossa porta, ao mesmo tempo que se começam a sentir com brutalidade os efeitos económicos da globalização. É a dimensão política da globalização que se afirma. Por outras palavras, chegam ao fim os consensos da antiga guerra fria.

Foi neste novo espaço geopolítico que acabaram por se anichar os regimes comunistas ou pós-comunistas da China e da Rússia, formando agora um bloco de novo tipo – os BRICs – onde se aliaram ao Brasil e à Índia, bem como a toda uma série de candidatos emergentes, desde a Turquia às portas da EU até a América Latina, a África e a Ásia. Muitos vêm de um «terceiro mundo» caído outrora sob a alçada soviética, como Angola, ou são herdeiros do movimento dos então «não-alinhados», hoje demasiado esquecidos, como a Indonésia. Por isso é tão curioso como preocupante vê-los realinhados pelas dúvidas e pelos silêncios cúmplices perante a selvajaria do avião abatido na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia.

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A geopolítica não acabou; pelo contrário, irrompeu com nova força. Porém, já não se divide entre comunistas e capitalistas, mas sim entre democracias desgastadas como as da Europa e dos próprios USA, por um lado, e por outro, uma vasta série de novos-ricos que buscam, sem olhar a meios nem a regras, um poder político equivalente ao seu crescente peso económico, como sucede desde a capitã China e a frustrada Rússia até aos confins da globalização!

Veja-se efectivamente como a Rússia começou por negar a selvajaria do avião abatido e como, para citar o Observador, «a agência noticiosa chinesa publicou um editorial onde aconselha a que não se tirem ‘conclusões precipitadas’ sobre quem causou a queda do avião e critica os países ocidentais por estarem a fazer ‘acusações unilaterais’ em relação aos separatistas pró-russos e à própria Rússia». Assim se refez, depois da ruptura sino-soviética do início dos anos 60 do século passado, a inabalável aliança geo-estratégica entre os dois irmãos-inimigos, como demonstram todas as votações relevantes no Conselho de Segurança da ONU.

E mais surpreendente do que tudo, demonstrando o fim de todos os consensos, é a própria Angela Merkel quem considera ser “prematuro” tomar decisões sobre a imposição de sanções mais pesadas contra a Rússia. Neste momento, acrescenta a chanceler alemã, “é necessária a realização de uma investigação independente”, conforme se lê no Observador. Nem mais: a cedência ante o peso maciço da globalização económica fez com que não haja consenso político que sobreviva. E não se pergunte o que pensam as opiniões públicas guiadas pelas comunicações sociais dos BRICs e “briquezinhos”…

Não há selvajaria que chegue para fazer recuar a violência das movimentações que já levaram os dois “falcões” do mundo ocidental – USA e Grã-Bretanha – a capitular perante a Síria e outros que tais, devido à crescente desconfiança dos velhos eleitorados fartos de guerras, sobretudo depois da descoberta que as “armas de destruição maciça” do Iraque afinal não existiam… Coincidência das coincidências, foi nesta mesma hora que os BRICs, reunidos no Brasil, entenderam confirmar que tudo começara com a extinção dos acordos de Bretton Woods pelos USA (1971) e assinalaram a vitória da globalização com a criação de um novo «banco mundial» só para emergentes.