Depois de meses de hesitação, na passada quinta-feira, o BCE confirmou o aumento das taxas de juro em julho e em setembro. Em julho, aumentarão 0,25 pontos percentuais. Em setembro, há a possibilidade de o aumento ser maior. Será o primeiro aumento de taxas de juro em 11 anos. Adicionalmente, no dia 30 de junho termina o programa de compras de dívida pública dos Estados-membros, iniciado em 2014 por Mario Draghi.
O BCE vive o maior desafio da sua existência. Por um lado, devido à sua reação tardia, parece ter deixado a inflação fora de controlo, colocando em risco o cumprimento do seu mandato.
Por outro lado, a inversão da política monetária coincide com uma forte desaceleração da economia europeia. As previsões da OCDE para o crescimento do PIB em 2022 foram revistas em baixa para a generalidade dos países. Dada a coincidência com o aumento das taxas de juro, que vão reduzir o consumo e o investimento, o BCE arrisca-se a ser visto como o causador de uma recessão.
O que justificou o atraso na resposta do BCE?
A reação lenta e confusa do BCE ao surto inflacionista dos últimos meses é, em parte, um sintoma da alteração do papel dos bancos centrais na última década.
Com a crise financeira internacional, os Estados endividaram-se e ficaram limitados na sua capacidade de utilizarem a política orçamental para estabilizarem as economias. No combate à crise económica provocada pela pandemia Covid-19, os bancos centrais foram mais uma vez decisivos no apoio à economia. Assim, na última década, a política monetária ocupou o palco das políticas económicas e, na ausência de pressões inflacionistas, alargou o seu campo de intervenção.
No caso do BCE, os programas de compras de dívida têm sido essenciais para garantir o financiamento dos Estados e das economias, mas também para garantir a estabilidade da Zona Euro.
De facto, a primeira razão para as hesitações do BCE decorre dos receios, bem fundados, do impacto nas taxas de juro dos países mais endividados. Desde o início do ano, as taxas de juro têm vindo a aumentar de forma acentuada nos países do sul da Europa. A taxa de juro da dívida pública a 10 anos superou os 4% na Grécia, os 3% na Itália e os 2% em Espanha e Portugal.
Num contexto de grande endividamento dos Estados, de forte desaceleração do crescimento económico, o aumento das taxas de juro gera um risco real de uma nova crise na Zona Euro. Por essa razão, a pergunta que muitos investidores hoje colocam é a seguinte: se não o BCE, quem é que vai comprar a dívida dos países do sul da Europa?
A resposta a esta pergunta terá de ser dada pelos Estados-membros da Zona Euro e pela Comissão Europeia. Portugal respondeu bem ao colocar a prioridade da redução da dívida pública no Orçamento do Estado para 2022. O BCE tem de se focar no combate à inflação.
A segunda razão para o atraso do BCE na resposta às pressões inflacionistas é a alteração no relacionamento com o poder político, com efeitos no seu estatuto de independência. De facto, seja porque o BCE esteve mais focado na gestão da crise do euro e da pandemia Covid-19, seja porque os seus dirigentes têm hoje um perfil mais político (lembram-se da polémica da saída de Mário Centeno diretamente do Ministério das Finanças para o Banco de Portugal?), o BCE parece ter esquecido que o seu mandato é combater a inflação.
Na década de 70, os governos dos países desenvolvidos perceberam os efeitos nefastos e altamente desestabilizadores das taxas de inflação elevadas e atribuíram aos bancos centrais independência para prosseguirem o objetivo da estabilidade de preços. Esta mudança institucional foi fundamental para a redução das taxas de inflação, permitindo aos bancos centrais protegerem-se das pressões de curto prazo do poder político.
Paul Volcker, nomeado pelo presidente Jimmy Carter para liderar a Reserva Federal em 1979, fixou um novo padrão para os bancos centrais, concentrando a sua ação na estabilidade dos preços, e isolando a política monetária das pressões políticas de curto prazo. Apesar do risco de recessão e do aumento do desemprego, fez tudo o que foi necessário para conter a inflação. Bancos foram à falência e Jimmy Carter perdeu as eleições. Paul Volcker, depois de terminar o seu mandato em 1987, nunca mais ocupou um cargo de relevo na administração americana. No entanto, no combate à inflação, sabemos que há um antes e um depois de Volcker.
Desde então, iniciou-se um movimento de reforço da independência dos bancos centrais, a quem foi atribuído um mandato claro: a estabilidade dos preços. Esta estratégia era acompanhada de uma comunicação transparente e da responsabilização dos bancos centrais pelos resultados alcançados no combate à taxa de inflação.
A crise inflacionista que estamos a viver é um teste ao BCE e aos seus dirigentes. No curto prazo, o aumento das taxas de juro gerará riscos para a unidade da Zona Euro. Os governos nacionais e a Comissão Europeia têm de encontrar soluções para a compra de dívida dos Estados que ficarem sob maior pressão.
O BCE tem de se concentrar no objetivo da redução das taxas de inflação. Primeiro, porque a taxa de inflação destrói o rendimento das classes mais desfavorecidas e pode conduzir a instabilidade social e política. Segundo, porque no médio e no longo prazo as taxas de inflação baixas são uma condição para termos taxas de juro baixas. E estas são essenciais para garantir a sustentabilidade das dívidas públicas e a estabilidade da Zona Euro.