É muito pouco provável que a União Soviética ressuscite 30 anos depois do seu desaparecimento físico, mas estamos a assistir ao ressurgimento em força da sua política externa, que, por sua vez, foi herdada do Império Russo.
Quando estudei História na Universidade de Moscovo (1977-1984), havia numerosos enigmas que só consegui alguns esclarecer depois de Mikhail Gorbatchov, primeiro e último Presidente da URSS, chegar ao poder e permitir o acesso a muitos dos livros e documentos que não alinhavam com “verdade ideológica” do Partido Comunista da União Soviética.
Nem Marx, nem Engels, nem Lenine escaparam à censura dos seus seguidores e camaradas. Por exemplo, os soviéticos não podiam saber o que pensavam os dois primeiros clássicos do marxismo sobre a política externa do Império Russo.
Um dos artigos de Friedrich Engels proibidos na URSS foi escrito em 1890 e chamava-se: “A política externa do czarismo russo”. Ao abordar a possibilidade de deflagração de um conflito mundial no continente europeu, ele afirma: “Todo este perigo de uma guerra mundial desaparecerá no dia em que as coisas na Rússia tomarem um rumo tal que o povo russo possa pôr fim à política tradicional de conquista dos seus czares e, no lugar de fantasias sobre o domínio mundial, ocupar-se dos seus próprios interesses vitais no interior do país, interesses ameaçados por um extremo perigo”.
Pelos vistos, os camaradas soviéticos de Engels não gostaram deste parágrafo do artigo, pois, como é sabido, a política tradicional de conquistas e as fantasias sobre o domínio mundial continuaram a dominar na era soviética (1917/22-1991), mudando apenas o rótulo para “internacionalismo proletário”.
Verdade seja dita, a política externa soviética fez com que a influência da URSS chegasse mais longe do que a do Império Russo, a todos os continentes do planeta. Porém, essa ânsia de expansão foi uma das causas da queda de um império que controlava metade da Europa. A União Soviética não conseguiu atingir níveis económicos e financeiros capazes de manter a sua política externa expansionista.
A política externa de Mikhail Gorbatchov visava precisamente pôr fim às fantasias expansionistas com vista a libertar meios económicos e financeiros para resolver os graves problemas internos do seu país. Porém, eram tantas as dificuldades e obstáculos difíceis que se colocavam perante ele que o seu país acabou por sucumbir a 25 de Dezembro de 1991. Nesse dia, Gorbatchov renunciou ao cargo de Presidente da URSS perante as câmaras de televisão e a bandeira vermelha soviética foi substituída pela tricolor russa no Kremlin.
Nas palavras, era isso que Boris Ieltsin pretendia fazer depois da Rússia se tornar independente, mas, na prática, observámos uma política que levou o país à bancarrota. As experiências económicas, muitas delas incentivadas pelo Ocidente, tiveram resultados catastróficos, foi perdida uma oportunidade para aproximar a Rússia da União Europeia e da NATO.
Foram muitos os russos que ficaram desencantados com a política dos países ocidentais, considerando que eles não só queriam humilhar o seu país, mas também fazer dele uma potência de segundo ou terceiro grau.
Estava lançada a passadeira vermelha para que Vladimir Putin, coronel do KGB soviético, entrasse no Kremlin e começasse a erigir um regime totalitário que parece não ter fim.
Em prol da verdade, após a chegada de Putin ao poder, a política de aproximação entre a Rússia, por um lado, e a NATO e a União Europeia, por outro, continuou até 2014 e com resultados visíveis. Porém, a anexação da Crimeia e a invasão militar do Leste da Ucrânia pelas tropas russas fizeram recuar as relações aos tempos mais dramáticos da guerra fria.
Vendo-se perante vitórias fáceis e enfrentando uns Estados Unidos e uma União Europeia mergulhados em fracassos militares significativos no Iraque, Síria, Líbia e, especialmente, no Afeganistão, Vladimir Putin tenta reforçar as suas posições no mundo e apresenta aos seus potenciais adversários um verdadeiro ultimato, que, a ser aceite, significaria um aumento abismal das suas zonas de influência.
Resta saber até onde o autocrata russo poderá ir para alcançar objectivos claramente inatingíveis. A julgar pela propaganda russa, os desideratos são faraónicos. Piotr Akopov, comentador político da agência oficial russa Ria/Novosti, publicou um artigo com um título muito sintomático: “A vergonha espera os Estados Unidos: terão de pedir perdão à Rússia”.
Entre outras coisas, ele descreve as regiões onde a Rússia tem interesses: “A Rússia tem interesses não só no espaço post-soviético, simplesmente em relação a ele nós traçamos com a máxima rigidez as linhas vermelhas. Temos interesses praticamente em todas as regiões do mundo e, se tivermos em conta a nossa localização geográfica, essas regiões são, na sua maioria, nossos vizinhos. Na realidade, a Rússia não é simplesmente uma potência euro-asiática, que faz fronteira com a Noruega e a Mongólia, mas também pacífica. Por outras palavras, não só a China e o Japão, mas igualmente toda a região do Sudeste Asiático – países da ASEAN estão próximos de nós”.
E os apetites do propagandista não se ficam por aqui: “O Médio Oriente é mesmo uma região fronteiriça, porque somos vizinhos do Irão no Cáspio. Longe das nossas fronteiras estão apenas a América do Sul (embora sejamos separados apenas pelo Oceano Pacífico) e a África, mas lá temos interesses e laços históricos sérios”.
Propaganda à parte, seria importante saber com que meios económicos e financeiros irão os dirigentes russos realizar semelhantes “fantasias”. Claro que a Rússia é uma potência militar capaz de pôr fim à Terra com as suas armas nucleares, mas, em termos económicos, continua a ser um gigante com pés de barro. Segundo dados do Banco Mundial, o seu Produto Interno Bruto é cerca de vinte vezes menor do que o dos Estados Unidos, aparecendo no 12º lugar atrás de países como a China, Índia, Itália, etc.
Por conseguinte, a história ameaça repetir-se e a Rússia poderá ter o mesmo destino da União Soviética. É verdade que o país obtém fortes rendimentos com a exportação de gás e petróleo, mas estes meios são gastos na corrida aos armamentos, desaparecem nas “areias” da corrupção, restando apenas migalhas para melhorar o nível de vida população e investir na modernização.
Nunca é demais recordar a política do czar russo Alexandre II que, depois da derrota da Rússia na guerra da Crimeia (1853-1856), concentrou todos os esforços nacionais na realização de reformas com vista a modernizar o gigante Império Russo. Vladimir Putin simpatiza mais com Nicolau I, que ficou conhecido como o “polícia da Europa”.