Os últimos meses de 2019 dizem-nos bastante sobre o que será da década inaugurada esta semana. Em Nova Iorque, só em dezembro, a comunidade hebraica sofreu 13 ataques e tentativas de agressão na via pública. Entre esfaqueamentos e tiroteios, os crimes de ódio anti-semita dispararam 21% no ano que terminou.
No Reino Unido, o Partido Trabalhista sofreu a sua pior derrota eleitoral em décadas, encontrando-se dilacerado pelo radicalismo de Jeremy Corbyn e desacreditado pelo anti-semitismo do seu movimento. Também em dezembro, há cerca de um mês, 14 cristãos foram assassinados por terroristas islâmicos no Burkina Faso. Na Índia, o final de 2019 foi marcado por protestos contra a nova lei da nacionalidade, que exclui cerca de 200 milhões de cidadãos muçulmanos. Em novembro, uma investigação do New York Times revelou ordens confidenciais do Partido Comunista Chinês para os campos de concentração em Xinjiang “não mostrarem qualquer misericórdia” face às minorias religiosas da região.
A polarização da retórica política no Ocidente, o terrorismo islâmico em África e o crescente iliberalismo das potências asiáticas colocarão a liberdade religiosa sucessivamente em causa nos próximos dez anos. Será, ao que tudo indica, uma década de intolerância no mundo. E a resposta de uma jovem democracia europeia, como a portuguesa, não é fácil nem evidente.
Economicamente, os últimos governos viveram um ciclo de aprofundamento de relações com a China e — à esquerda e à direita — ouviram-se poucos críticos a essa aproximação. As referências aos direitos humanos e à liberdade religiosa foram muito pontualmente feitas pelo Presidente da República, quando visitou Pequim. Por outro lado, a única líder partidária que se pronunciou publicamente sobre as perseguições a cristãos em 2019 foi, perdoem-me o facciosismo, Assunção Cristas. O regresso do anti-semitismo à América e à Grã-Bretanha é um problema, por enquanto, quase desconhecido em Portugal. Os campos de reeducação religiosa na China, onde os trabalhos forçados e a violência são prática comum, passam igualmente despercebidos.
No mês passado, enquanto a Índia ardia em protestos que reclamavam a manutenção do secularismo que a mantém unida, António Costa declarava a sua “amizade” ao homem que está determinado a por termo a esse secularismo: Narandra Modi. Depois de o primeiro-ministro indiano proibir as manifestações que despontaram por todo o país, prender pacifistas e aprovar leis que roçam o racismo, o primeiro-ministro português brindou o Twitter com sorrisos e sentimentos “vibrantes” de fidelidade.
Este texto não é, atenção, uma crítica política, mas antes a constatação de que o posicionamento português perante o nacionalismo indiano — ou o chinês, já agora — dificilmente poderá permanecer tão entusiástico nos novos anos vinte.
Basta conversar com um cidadão indiano para entender os receios da comunidade muçulmana. Basta ler a legislação de acesso à cidadania para vislumbrar o objetivo de tornar a Índia um Estado-hindu. Basta ver o aumento de ataques contra cristãos e muçulmanos para detetar as consequências da visão teocrata de Modi. Nas populações rurais e mais remotas do país, por exemplo, onde os processos de registo e identificação civil ainda não chegaram, teme-se que aqueles que são muçulmanos sejam levados para campos de detenção semelhantes aos recentemente expostos na China.
Pessoalmente, não creio que um português se queira dizer “amigo” destas desumanidades. A próxima década o dirá.